A artilharia feminista

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Por MARIA RITA KEHL*

Considerações sobre o livro de Susan Faludi

Quem é o grande responsável pelo retrocesso do feminismo norte-americano a partir da década de 1980 – os maridos e pais de família ressentidos com o poder das mulheres? Os políticos da Nova Direita da era Reagan? A indústria da moda? A mídia conservadora? A indústria de cosméticos? As líderes feministas arrependidas dos anos 1970?

Se o leitor pensou em qualquer uma dessas respostas, estará de acordo com os argumentos de Susan Faludi, autora de Backlash: o contra-ataque na guerra não declarada contra as mulheres. O livro, uma extensa reportagem sobre a reação antifeminista nos Estados Unidos, foi publicado em 1991 e se tornou uma referência importante no assunto. Faludi descreve os avanços e recuos da moda e da publicidade, da medicina, do cinema hollywoodiano e sobretudo da imprensa, como uma ampla e bem orquestrada frente de batalha contra os ideais e as conquistas feministas das décadas de 1960 e 1970, frente que ela qualifica como uma guerra contra as mulheres em geral.

Os dados e as histórias dramáticas escolhidos pela autora para ilustrar seu argumento são convincentes. A partir de 1980, quando a militância feminista parecia ter perdido um pouco do fôlego inicial, alguns acadêmicos e jornalistas ganharam súbita notoriedade divulgando pesquisas nas quais o feminismo aparecia como grande responsável pela infelicidade das mulheres independentes, descritas como executivas estressadas, doentias e mal-amadas. Mulheres ambiciosas que adiaram o casamento ou a maternidade para investir na carreira estariam percebendo seu erro tarde demais, quando os homens supostamente já não as queriam, e as chances de engravidar diminuíam a cada ano.

Teóricos da escassez de nascimentos apelaram para a xenofobia, o militarismo e a intolerância, acusando o feminismo de ter corrompido a vocação das mulheres para a maternidade, enfraquecendo assim a nação americana. Se as mulheres brancas, esclarecidas e de classe média não procriassem o suficiente, o país seria povoado majoritariamente por pobres, negros e chicanos. Um procurador geral da Comissão sobre Pornografia do governo atribuiu às mulheres que trabalhavam e estudavam a responsabilidade pelo aumento de estupros: expondo-se nas ruas, criavam mais oportunidades de serem molestadas.

A relação de absurdos proferidos e cometidos contra a emancipação das mulheres, inclusive por outras mulheres, é interminável. Até mesmo os direitos mais elementares, como creches para filhos de mulheres trabalhadoras, são contestados pela opinião pública conservadora; ao contrário de todos os países industrializados do mundo, os Estados Unidos não têm um plano de governo para creches e assistência à infância. Trabalhadores vitimados pela recessão dos anos 1980, que em média vinham ganhando 25% a menos do que nos anos 1970, acusaram as mulheres que trabalhavam para completar a renda familiar de estar usurpando seu lugar como provedores da família, embora o salário das mulheres tivesse se mantido sempre abaixo do dos homens.

Depois das primeiras cem páginas de denúncias e acusações, as teses de Susan Faludi começam a parecer convincentes demais. Ao final, o leitor já se ressente do excesso de provas acumuladas pela autora. Falta alguma coisa aqui, onde sobram evidências a favor da vitimização das mulheres. Backlash pretende ser uma análise do movimento antifeminista nos Estados Unidos, mas não passa de uma pesada peça de artilharia nessa suposta guerra em que os antagonistas parecem tão bem definidos como num filme de segunda classe. Nenhuma crítica ao feminismo é levada em consideração pela autora.

Para se manter inabalável em suas convicções, Faludi ignora a crise social e familiar desencadeada pelo deslocamento das mulheres de suas posições tradicionais, crise que provavelmente motivou o ressentimento antifeminista na sociedade norte-americana e que, em todo o mundo ocidental, mulheres e homens ainda estão tentando resolver. Diante dos novos problemas enfrentados pelas mulheres na modernidade, ganha força o apelo conservador por um retrocesso a posições que na prática já se tornaram impossíveis.

Mas, se a reportagem de Susan Faludi é insuficiente para nos ajudar a entender a complexa relação entre mulheres, homens, masculinidade e feminilidade (não necessariamente nessa ordem) – uma relação toda mediada pelo falo e seus símbolos –, não deixa de ser uma obra esclarecedora a respeito do destino das ideias e dos conflitos sociais na sociedade de massas. O livro é, ele mesmo, uma denúncia da cultura de massas e um sintoma do que ela tem de pior, pois a autora se revela incapaz de ultrapassar os termos em que os problemas do pós-feminismo são apresentados pela imprensa, pela publicidade e pela televisão, reduzidos aos vetores que se prestam às análises estatísticas das pesquisas de mercado.

O feminismo é um bem em relação ao qual os consumidores de ideais são convocados a se posicionar. Conforto emocional, bem-estar e autoconfiança são os parâmetros, típicos de uma cultura individualista, utilizados para avaliar o grau de acerto das escolhas de vida das mulheres, sejam elas políticas, afetivas, éticas ou de estilo. As “repercussões de mídia” são o termômetro e a medida para avaliar o sucesso de todos os empreendimentos.

Se uma ideia “fez a mídia”, ela cumpriu seu destino, independentemente de sua consistência, de seus efeitos, de sua honestidade. Backlash está recheado de casos de médicos, acadêmicos e estilistas que, em busca de impacto nos meios de comunicação, inventam métodos mágicos de rejuvenescimento, revelações bombásticas sobre a chave da felicidade para as mulheres ou detectam tendências nostálgicas de retorno ao estilo vitoriano na moda feminina.

No entanto, como várias passagens de Backlash demonstram, a grande onda de expansão do feminismo também pode ter sido um fenômeno de mídia e publicidade. As indústrias da moda e de cosméticos, apontadas pela autora como grandes inimigas dos ideais feministas, também enriqueceram vendendo terninhos práticos para as mulheres emancipadas, lingeries confortáveis para as esposas insubmissas que se recusavam a seduzir os maridos com rendas e babados.

Até mesmo um perfume, (“Charlie”, da Revlon) lançado em 1973, teve seu estoque esgotado em poucas semanas por se apresentar como a fragrância da poderosa “nova mulher”. Só que a necessidade de renovação permanente da indústria cultural tornou o feminismo tão obsoleto quanto todas as outras tendências de mercado e substituiu a moda da mulher emancipada pela das neovitorianas, a venda de gadgets para facilitar a vida da trabalhadora independente pela venda de produtos para as mocinhas casamenteiras da geração seguinte.

Susan Faludi não se dá conta de que o feminismo norte-americano pode ter sido capturado por essa lógica da mídia, da moda e da publicidade, transformando-se em mais um fenômeno de massas numa sociedade de massas, tão ultrapassável e inconsistente quanto todos os outros.

Se o feminismo dos anos 1960 e 1970 se projetou como fenômeno de mídia, “alavancado” pela poderosa indústria editorial e cinematográfica norte-americana, paparicado pela indústria da moda, não é de espantar que na década seguinte líderes feministas temerosas de cair na obscuridade tentem se projetar novamente lançando livros revisionistas, como a legendária Betty Friedan com The Second Stage (1981); ou que um ex-pacifista como o poeta Robert Bly ressurja dez anos depois de seu primeiro momento de projeção pública conclamando os homens, em grandes palestras a US$ 55 por cabeça, a ignorarem a pressão das mulheres e voltarem a seu estágio selvagem, guerreiro, animalesco – a essência da verdadeira masculinidade.

Mais do que um contra-ataque na guerra contra as mulheres, Backlash pode ser lido como uma reação sintomática da sociedade norte-americana contra a alienação própria da cultura de massas, que lança a todos, homens e mulheres, na pior versão da condição feminina. Não porque o mundo ocidental esteja sob o poder das mulheres. Não porque já não existam machões como os de antigamente. Mas porque a cultura de massas se apropria das falas que a contestam e rouba dos sujeitos sua condição de agentes políticos, sociais, estéticos. Como as mulheres sem voz e sem voto das culturas mais retrógradas, na sociedade de massas somos todos transformados em objetos do discurso do Outro.

*Maria Rita Kehl é psicanalista, jornalista e escritora. Autora, entre outros livros, de Deslocamentos do feminino: a mulher freudiana na passagem para a modernidade (Boitempo).

 

Referência


Susan Faludi Backlash. Backlash: o contra-ataque na guerra não declarada contra as mulheres. Tradução Mario Fondelli. Rio de Janeiro, Rocco, 460 págs.

Publicado originalmente no jornal Folha de S. Paulo [https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs0601200210.htm], em 06 de janeiro de 2002.

 

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