A dama, a burla e o pequeno vigarista

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Por SANDRA BITENCOURT*

Do ódio digital a pastores teens: como as polêmicas de Janja, Virgínia Fonseca e Miguel Oliveira revelam a crise da autoridade na era dos algoritmos

1.

Os acontecimentos que mais marcaram polêmicas, cliques e controvérsias no mundo digital nas últimas semanas apresentam personagens distintos, propósitos diversos, mas ao mesmo tempo unificam a certeza de uma mudança irrefreável no modo de produzir opinião, influenciar, informar e entreter por meio dos bytes.

Sabemos que a vitrine digital hoje, substituiu, em grande medida, a autoridade pela influência. Formato, linguagem e estilo são capazes de mobilizar, ditar comportamentos, vender e produzir tendências com maior rapidez e mais zeros nos cifrões de publicidade, que a tradicional mídia corporativa e seus referentes em várias áreas.

Vale isso mesmo para o ambiente da política, corporativo, científico e mesmo institucional. O número de seguidores, embora não seja parâmetro de competência ou credibilidade, é métrica de sucesso e pode ser decisivo para a ocupação de espaços, seja esse espaço o púlpito de uma igreja, uma liderança política ou o topo da propaganda de jogos digitais.

Também é verdade o seu contrário. Os recordistas de repulsa acabam se destacando na vitrine digital, mas obviamente não acumulam de modo positivo para suas causas e representações. Se olharmos o cenário da discussão digital hoje no país, espontânea ou dirigida e fabricada, veremos como algumas “personas” públicas são mais afetadas.

É o caso da primeira-dama do Brasil, Janja da Silva. Poderíamos abordar a questão do ponto de vista da institucionalidade e da conveniência de suas agendas e aparições. Seria ela uma nova figura rompendo enquadramentos clássicos da política machista e, por isso, tornando-se alvo para a mídia crítica ao governo, que quando considera oportuno recorre à misoginia e ao machismo?

Nesse mesmo registro, acaba sendo matéria-prima para a produção mais odiosa e violenta da extrema direita. Ou há de fato um exagero na sua atuação como representante não eleita, porta-voz de temas que não tem autoridade ou mandato para interferir?  Estão claros os limites da sua condição privada de mulher de Lula versus sua posição pública de acompanhante/representante do presidente com agendas próprias e opiniões (e não nos enganemos, deslizes) que podem comprometer representações e negociações para o país?

A abordagem aqui proposta não é discutir o que tem representado na prática a tal ressignificação do papel da primeira-dama, seja lá o que for isso, já que na minha opinião trata-se de um papel superado, que nem deveria existir. Mas, observar o quanto essa presença digital abre fragilidades e opera para o desgaste da imagem de um governo que a despeito das conquistas e resgates que fez, se vê cercado por desinformação e questionamentos que interferem na sua popularidade.

2.

Dizendo de modo simples e direto, o quanto a presença de Janja da Silva e o uso — não raro desonesto — das suas aparições abre flanco para atrapalhar agendas bem-sucedidas do governo. Aconteceu no G-20, de novo ocorreu na histórica visita à China.

Os números mostram que esse é um caminho trilhado com força pela oposição e pelos bandidos que promovem fake news. Dados da empresa Palver, de monitoramento, mostram que, na última semana, ao menos duas narrativas — falsas, distorcidas ou sem comprovação — viralizaram como avalanche, especialmente no Whatsapp e Telegram, associando Janja da Silva a escândalos de corrupção como maneira de afetar a credibilidade do presidente e do governo federal.

Tais ataques tem promoção e engajamento do ex-presidente e réu Jair Bolsonaro. O que levou a AGU a acionar oficialmente as redes sociais abertas (não os apps) que atuam no país para que eles tentem conter a desinformação.

A newsletter Ebulição revela que o problema é que o volume da conversa anti-Janja disparou muito. Difícil conter. Até ontem, postagens contra a primeira-dama acumulavam mais de 250 mil interações no Facebook, Instagram e X (ex-Twitter). No WhatsApp e Telegram, já haviam aterrissado em mais de 234 grupos públicos, atingindo 730 mil pessoas em todo o país. Trata-se, portanto, de uma avalanche de mensagens praticamente impossível de estancar.

Desde que se casou com Lula em 2022, Janja da Silva é alvo recorrente de ataques digitais. Mas de acordo com a análise desse monitoramento, a atual onda de críticas e desinformação contra ela se destaca por combinar dois elementos inusitados. O primeiro é o já conhecido questionamento de sua participação na comitiva das viagens oficiais de Lula.

Janja da Silva já foi alvo de ataques quando foi ao Japão, França e Itália. Agora, com sua ida à Rússia e à China, as fakes ganharam novo fôlego. O segundo ingrediente que se destaca é a tentativa de também vincular Janja a dois escândalos políticos do país — um super atual e corrente e outro que já tem mais de doze anos.

“Uma análise das mais de 905 mensagens únicas publicadas sobre Janja na última semana mostra que ela está sendo abertamente comparada a Rosemary Noronha, que foi assessora de Lula em São Paulo em 2013. Além dessa linha de ataque, os opositores de Lula também tentam envolver Janja nas denúncias recentes do INSS”, alerta a análise da newsletter Ebulição.

Centenas de mensagens analisadas pela Ebulição alegam, sem apresentar qualquer prova, que a primeira-dama teria viajado à Ásia para, na verdade, transportar malas de dinheiro – valores supostamente desviados de aposentados e pensionistas com a ajuda de sindicatos. Busca-se colar em Janja da Silva a imagem de figura central em esquemas de corrupção e de quebra afetar o presidente.

3.

É fato que as histórias contra a primeira-dama ganham tração e se transformam em uma espécie de calcanhar de Aquiles. Para além da fabricação de fake news, outros aspectos também concorrem para a performance preocupante: transparência dos atos de governo e das despesas com viagens, influência – legítima ou não – da companheira do presidente nas decisões políticas, silenciamento de críticos do próprio governo que não encontram espaço para tentar corrigir uma situação que, justa ou injusta, corrói credibilidade e drena esforços que deveriam estar a serviço da divulgação positiva.

Sabe-se, que em sua visita à Rússia, Janja da Silva cumpriu uma agenda pública voltada à cultura, educação e cooperação internacional. As acusações são infundadas. Na China, o presidente garante que a manifestação de Janja sobre o TIK Tok foi provocada por ele.  A solução seria impedir as viagens e as agendas dela?

Não, mas planejar considerando os possíveis ataques e o uso estratégico disso, prever falas públicas, divulgar custos, obedecer a protocolos, ritos e cerimoniais seria bem recomendável. A ofensiva digital contra a primeira-dama faz parte de uma estratégia maior de deslegitimação do governo por meio da desinformação, com um ingrediente apetitoso no cardápio das redes: a misoginia.

4.

Na mesma semana da histeria pela passagem internacional de Janja da Silva, outra figura que reina absoluta no topo da influência digital, se burlou do parlamento brasileiro e aumentou seu próprio engajamento. Virgínia Fonseca mostrou desenvoltura no papel de garota ingênua que não teria consciência de seu poder de influenciar milhares em troca de quantias altíssimas.

Sua aparição com figurino milimetricamente pensado, na Comissão Parlamentar de Inquérito das Bets, não apenas serviu simbolicamente para isentá-la de responsabilidades, como produziu notoriedade extra ao seu célebre perfil. Ainda de quebra, reduziu a postura de alguns parlamentares a auxiliares de picadeiro.

Isso mesmo. Um circo, cujo ápice consistiu nela chupando o microfone e falando no canudo do seu copo Stanley. Muitas referências do Tik Tok e seus seguidores ávidos por entretenimento. Uma imagem de inocência: uma garota arteira que certamente não sabe as consequências perversas do mundo de jogos e apostas que ela divulga. Essa foi a imagem almejada.

A clara ação manipulatória nos leva, mais uma vez, à necessidade de regulação da influência digital, que monetiza recomendação de produtos, serviços e comportamentos como se fosse algo espontâneo e que na verdade move engrenagens milionárias. Responsabilizar por malefícios é uma discussão que precisa ser enfrentada, de modo mais profundo do que um vídeo curto de Tik Tok.

5.

Por fim, vamos à celebridade mais surpreendente dos últimos tempos: o projeto de estelionatário, o pastor-menino que fala em línguas celestiais, mente, opera falsos milagres e virou fenômeno na Internet. Miguel Oliveira, de apenas 14 anos, se tornou um dos missionários mirins mais conhecidos do país e foi banido das redes quando já contava com um milhão de seguidores no Instagram e dezenas de vídeos virais.

Os pais dizem que o garoto é vítima de linchamento público, depois dele ter sido proibido de pregar, acusado de explorar a fé alheia para obter vantagens financeiras. O rapazinho fez tanto estrago, teve tamanho desembraço para contar milagres bizarros (como a suposta cura de sua própria surdez congênita), que na alta competição do mercado da fé, pastores mais antigos ficaram incomodados.

Os pais prometem processar os conteúdos ofensivos e “sensacionalistas” contra o menino, mas o Ministério Público e Conselho Tutelar agiram para retirá-lo desse cenário. Miguel já recebeu apoio de algumas figuras públicas da extrema direita, como o influenciador Pablo Marçal, que de maneira translúcida disse de seu interesse: se todos estão batendo nele, preciso prestar atenção no que ele fez de certo.

O “falso profeta teen” recebeu ameaças e provocou uma discussão sobre os limites entre ser intolerante religioso e criticar o uso político da religião. Será o autor de “Of the King the power” uma promessa no cenário religioso ou mais uma figura que sabe utilizar linguagem profética e falsas revelações para ativar emoções que mantêm as pessoas conectadas?

Na história das emoções humanas há diversos meios para estudar as diferentes perspectivas: é possível examinar como os nomes das emoções foram alterados ao longo do tempo e como as palavras para descrevê-las foram mudando de significado. Há diferentes modos de explorar o entendimento das emoções dentro de suas épocas e culturas.

Mas algumas entradas continuam ativas para os pesquisadores desse campo, o que é o caso dos regimes emocionais, que são comportamentos esperados, impostos pela sociedade em que vivemos.[i] (FIRTH-GODBEHERE, 2022). Estes regimes definem como as emoções são expressas em determinado conjunto de circunstâncias. O trabalho emocional, termo cunhado pela socióloga Arlie Hochschild, surge, originalmente no pensamento marxista, como a necessidade de induzir ou suprimir sentimentos para manter a aparência exterior que produza nos outros o estado mental adequado.

Como é muito exaustivo, é difícil permanecer fiel a um regime emocional. Por isso buscamos refúgios e mudamos nossa maneira de conter emoções impostas de cima para baixo. O ambiente digital parece um território onde nos permitimos escolher e agir conforme nossos sentimentos, sem obedecer necessariamente a comunidades emocionais ou o que a cultura pretende impor. Embora não se tenha consenso científico que as emoções são universais alguns experimentos enumeram seis emoções básicas: felicidade, raiva, tristeza, repugnância, surpresa e medo.

Será que esses sentimentos permanecem no status quo emocional da atualidade? Cada cultura e cada indivíduo tem a própria maneira de sentir? Ou o mundo emocional é estático e imutável? Talvez um dos sentimentos descritos como universal seja a chave para compreender o engajamento de seguidores e que contaminam tanto o ambiente das redes: a repulsa, um sentimento que unifica e ajuda na polarização, causando severas reações.

Temos ainda muito pela frente para compreender seres humanos hiper conectados e influenciados por sofisticadas manipulações, ativando sentimentos atávicos. Até parece uma profecia, dessas que meninos de 14 anos ou mulheres vestidas de adolescentes contam e ganham dinheiro. Jogo difícil.

*Sandra Bitencourt é jornalista, doutora em comunicação e informação pela UFRGS, diretora de comunicação do Instituto Novos Paradigmas (INP).

Nota


[i] FIRTH-GODBEHRE, Richard. Uma história das emoções humanas: como nossos sentimentos construíram o mundo que conhecemos. Rio de Janeiro: Best Seller, 2022.


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