Che Guevara e a luta revolucionária na Bolívia

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Por LEANDRO GALASTRI*

Comentário sobre o livro de Luiz Bernardo Pericás.

1.

Che Guevara e a luta revolucionária na Bolívia preenche uma lacuna específica na literatura de língua portuguesa sobre o tema da campanha de Che Guevara no país andino. Desde o início fica evidente a pesquisa exaustiva das fontes disponíveis por parte do autor Luiz Bernardo Pericás e a forma como os métodos de pesquisa e exposição ficam evidenciados nas centenas de notas explicativas e bibliográficas organizadas ao final da edição.

Já autor de um livro indispensável sobre as ideias econômicas do Che Guevara ao tempo de seu comando do Banco Nacional de Cuba e do Ministério das Indústrias, conhecemos agora, em todos os seus detalhes importantes, o intento revolucionário boliviano do Che Guevara.

O livro se abre com uma caracterização do perfil da economia e da força de trabalho boliviana, formada por 72 por cento de trabalhadores do campo e oito por cento de latifundiários controlando 95 por cento das terras. A observação de Che Guevara a respeito, registrada por Luiz Bernardo Pericás a partir de Michael Löwy, não poderia ser mais contundente a respeito do problema objetivo da revolução na Indoamérica: “Esta revolução vai fracassar se não conseguir sacudir o isolamento espiritual dos índios, se não lhes tocar no que têm de mais profundo, comovendo-os até os ossos, devolvendo-lhes a estatura de seres humanos” (p.17).

Veja-se aqui a coincidência com o pensamento de Mariátegui, que já tratava da eliminação da servidão indígena como tarefa revolucionária no Peru e em todos os países americanos de maioria indígena e mestiça.

Temos também um mapeamento minucioso da ingerência dos Estados Unidos para evitar a revolução na Bolívia ou uma guinada ao socialismo. Demonstrando por exemplo, como o autor aponta em uma nota, que “uma das melhores maneiras de os Estados Unidos fazerem pressão sobre a Bolívia era por meio da dívida externa desse país, o maior devedor da América Latina e, per capita, do mundo, tendo de 1952 a 1964, recebido empréstimos que somavam mais de 398 milhões de dólares”.

Lembremo-nos aqui de como as amarras das dívidas externas, mais precisamente com o Fundo Monetário Internacional, serviria ainda por muito tempo para formatar a dependência econômica e a desindustrialização latino-americana em relação à economia dos Estados Unidos e sua submissão política ao imperialismo estadunidense.

No caso em pauta, uma empreitada que começou com a tentativa de levar a revolução para a Argentina terminou com o martírio de Che Guevara na luta em prol dos camponeses bolivianos, que não possuíam as condições subjetivas para o engajamento na luta revolucionária. A partir disso ficamos sabendo de muitas passagens interessantes e essenciais para a história desse período das tentativas revolucionárias na América do Sul, como por exemplo que a guerrilha argentina chegou a contar com uma rede de apoio urbana que incluiu José Aricó e Juan Carlos Portantiero, dois intérpretes axiais dos pensamentos de José Carlos Mariátegui e Antonio Gramsci (p. 43).

2.

Outra indicação muito interessante que temos no livro é a confirmação da proximidade ideológica do Che Guevara com a revolução chinesa e aspectos do maoísmo. Che Guevara chegou a escrever que “sobre toda uma série de coisas emiti opiniões que se aproximam às dos companheiros chineses: sobre a guerra de guerrilha, sobre a guerra do povo, sobre o trabalho voluntário, sobre os incentivos materiais – em resumo, uma série de coisas que também afirmam os chineses” (p.61)

A sensibilidade afetiva de Che Guevara também tem lugar importante no livro, como quando nos são lembradas as últimas recordações que o guerrilheiro argentino deixava para seus entes queridos, como uma carta emocionada para seus pais, uma para seus filhos e ainda uma terceira para o próprio Fidel Castro.

Cito: “Ele também gravou, como recordação para sua esposa, uma fita recitando alguns de seus poemas favoritos, entre os quais ‘Farewell’ e ‘Veinte poemas de amor y una canción desesperada’, de Pablo Neruda, ‘Piedra sobre Piedra’ e ‘Los heraldos negros’, de César Vallejo’”… O peruano César Vallejo, aliás, é hoje um dos mais prestigiados poetas em língua espanhola, sobre quem Mariátegui escreveria que “o primeiro livro de César Vallejo, Los Heraldos Negros, é a alvorada de uma nova poesia no Peru (…), o poeta de uma estirpe, de uma raça. Em Vallejo se encontra, pela primeira vez em nossa literatura, sentimento indígena virginalmente expresso”.

Após sua tentativa revolucionária no Congo, o guerrilheiro argentino chega à Bolívia em 3 de novembro de 1966, tendo curtas passagens antes por Tanzânia, Tchecoslováquia e um breve retorno a Cuba. Desde o início, Che Guevara enfrenta dificuldades logísticas e de organização de pessoal engajado na luta armada. Ele mesmo relata que a incorporação dos combatentes bolivianos teria sido a etapa mais lenta do processo (p. 110).

Processo que enfrentaria ainda deserções e delações, além do fato de que o momento não era favorável para o início de uma luta guerrilheira, já que as dificuldades materiais iniciais já deixavam os combatentes internacionalistas famintos, cansados e muito longe de suas melhores condições físicas. Não havia uma rede de apoio suficientemente forte nem suporte militar de nenhum partido e, de acordo com o próprio Che, seu Exército de Libertação Nacional encontrava-se cercado por 2 mil homens num raio de 120 quilômetros já em março de 1967.

A guerrilha, em todo caso, recebia apoio das camadas médias politizadas e mobilizadas, como estudantes universitários e professores. Em setembro de 1967, um grupo de conhecidos intelectuais bolivianos, entre eles René Zavaleta Mercado (outro profícuo intelectual latinoamericano conhecedor de Antonio Gramsci) e Horácio Torres Guzmán fundou, em La Paz, a “Coordenadoria Nacional de Resistência”, lançando um manifesto à nação em que denunciava “o governo como pró-imperialista, entreguista e antipatriótico, responsável pelos setores estratégicos da economia e por promover a desnacionalização sistemática, ao mesmo tempo em que reprimia a classe operária, especialmente os mineiros” (p. 141).

O combate que terminou na captura de Che Guevara, sua morte, o sumiço de seu corpo e sua descoberta em 1997 é contado no livro com riqueza de detalhes, que reúnem os relatos mais completos já conhecidos até hoje (pp. 146-152), bem como as interessantíssimas passagens do diário da guerrilha mantido por Che Guevara e o ocaso do Exército de Libertação Nacional Boliviano.

3.

A partir de sua segunda parte, o livro trata de forma minuciosa temas como a área geográfica onde se deu a guerrilha, as relações entre Che Guevara, o campesinato boliviano e a dramática história da reforma agrária na Bolívia. Além disso, aborda as relações entre as diferentes formas de luta política e armada, a relação entre os partidos políticos e a guerrilha, ou as guerrilhas bolivianas.

Na esteira da guerra de guerrilhas na América Latina, Luiz Bernardo Pericás nos lembra, neste capítulo do livro, de uma contundente passagem de Lênin a respeito das formas de luta popular admitidas em um processo revolucionário. Afirma o líder bolchevique, no artigo “A guerra de guerrilhas”, que “o marxismo admite as formas mais diversas de luta; ademais, não as ‘inventa’, mas sim as generaliza, organiza e torna conscientes as formas de luta das classes revolucionárias que aparecem por si mesmas no curso do movimento (…). Por isso, o marxismo não rechaça nenhuma forma de luta. O marxismo não se limita, em nenhum caso, às formas praticáveis e existentes somente em um momento dado, admitindo a aparição inevitável de formas de luta novas, desconhecidas dos militantes de um período dado, ao mudar-se a conjuntura social”.

No capítulo sexto, que versa sobre a atuação dos militares, o texto de Luiz Bernardo Pericás nos informa com detalhes que, na verdade, o exército não era homogêneo na ideologia de submissão convicta ao imperialismo; a guerrilha do Che Guevara teria provocado efeitos dentro e fora dos quarteis, efeitos que perdurariam por muito tempo depois; interessante aqui observar os relatos de oficiais e soldados que acabaram se identificando com a causa guerrilheira, ainda que em vários casos isso se resumisse a uma postura de simpatia.

O fato a ser salientado aqui podem ser as identificações de classe nas instituições militares, dado que a maioria dos soldados tinha inevitavelmente origem camponesa.

O último capítulo traz o interessantíssimo e original tema da presença de Che Guevara no imaginário social boliviano. Trata-se aqui de Che como mito, mas como mito real, popular, em toda força da acepção deste termo, e não a mitologia midiática do Che das camisetas e da publicidade. O item se abre com a foto de um busto de Che Guevara ao lado de uma cruz cristã, numa espécie de altar em que o guerrilheiro argentino aparece santificado, na cidade de La Higuera.

Não à toa, Pericás observa que o Che seria transformado numa espécie de “santo contemporâneo” pelo campesinato boliviano. Elementos como a circulação da imagem do corpo imolado de Che Guevara, fisicamente comparável ao corpo de Cristo quando retirado da cruz, teriam ajudado “a compor a figura santa, aos olhos de muitos, que percorreu a América Latina e foi incorporada no imaginário político e social da região” (p. 232).

Houve missa em honra a Che Guevara, celebrada pelo sacerdote dominicano Roger Schiller, que condenou o assassinato do argentino. Transcrevo aqui outro trecho sobre o fenômeno, melhor explicado nas próprias palavras do autor: “Quando o corpo do comandante era exibido em Vallegrande, alguns populares cortaram mechas de seu cabelo, para que fossem guardadas como amuleto. Os locais acreditavam que possuindo algo de uma pessoa martirizada garantiriam proteção divina. Um morador daquela cidade, Pastor Aguilar, comentou que ‘quando trouxeram o cadáver do Che, o levaram para o hospital Nuestro Señor de Malta, o estenderam na lavanderia e se formou uma romaria. Todos os povoadores de Vallegrande foram vê-lo, com muito respeito, admiração e sentimento. Muitos choraram.”

Ainda nessa passagem do livro ficamos sabendo que Che Guevara chegou a ser comparado a Cristo pelos populares, segundo alguns até mesmo por ter morrido em defesa dos pobres e humildes. Segundo alguns camponeses humildes, Che Guevara operava milagres, chegando mesmo a ser cultuado como San Ernesto de La Higuera. Já a classe média urbana, como em Santa Cruz, por exemplo, fazia sessões mediúnicas de cirurgias espirituais, sendo Che Guevara um dos médicos que baixavam em médiuns. (p. 236).

Opera aqui com toda evidência o fenômeno do mito, como chama atenção o autor, no sentido soreliano, ou seja, como um bloco de imagens que representa a redenção estampada no horizonte e ao mesmo tempo mantida na imaginação coletiva dos populares em luta ou em busca de um objetivo revolucionário final.

Este conceito soreliano era caro, como sabemos, a Mariátegui, que o assimilava como um incentivo à ação coletiva, como um impulso subjetivo-coletivo para a luta convicta e a mobilização política confiante. Para o inventor do conceito, o filósofo francês Georges Sorel, funcionavam como mitos tanto a salvação da alma sacrificada para os militantes do cristianismo primitivo quanto a greve geral para a luta operária da virada dos séculos XIX e XX.

As massas lutam em função da crença em um mito, cuja promessa e destino é se materializar na conquista revolucionária final. Nesse sentido, será que canonização de Che Guevara pelos populares do interior da Bolívia, como nos mostra Luiz Bernardo Pericás, seria sua transformação em uma espécie de mito incompleto? Um mito que acaba por ter um efeito apaziguador na consciência religiosa dos camponeses locais?

É uma pergunta que pode atravessar as fronteiras da Bolívia e alcançar as formas superficiais e mistificadoras pelas quais as causas do revolucionário argentino continuam a ser assimiladas e mal compreendidas, pelas quais suas contribuições teóricas para o marxismo da América Latina continuam a ser menosprezadas em nome do protagonismo da figura do guerrilheiro que parte para a prática da luta e do enfrentamento bravios.

É para o equilíbrio na compreensão da prática e do pensamento de Ernesto Che Guevara que mais esse livro de Luiz Bernardo Pericás nos é felizmente apresentado.

*Leandro Galastri é professor de ciência política da Unesp-Marília.

Referência

Luiz Bernardo Pericás. Che Guevara e a luta revolucionária na Bolívia. São Paulo, Boitempo, 2023, 420 págs. [https://amzn.to/4mDb6cM]

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