Por URARIANO MOTA*
Cientistas-escritores esquecidos (Freud, Galileu, Primo Levi) e escritores-cientistas (Proust, Tolstói), num manifesto contra a separação artificial entre razão e sensibilidade
1.
Em um post na internet, com o mesmo título acima, são relacionados Isaac Asimov, Carl Sagan e Miguel Nicolelis. Sem dúvida, cientistas dignos do nome de escritor. Mas as omissões, esquecimentos ou lacunas no post são muitas.
De memória, cito alguns ausentes.
A primeira observação é que não são reconhecidos como verdadeiros escritores certos cientistas no exercício mesmo da sua função e profissão. É claro, não vou me referir ao grande Albert Einstein na Teoria da Relatividade, que não sou doido. Mas quero e devo dizer que me refiro a Freud no lindo A interpretação dos sonhos, para mim, livro obrigatório do cientista, que possui iluminações sobre a nossa vida em magnífica prosa. Lembro também de Galileu, que ao falar sobre estrelas e astros descobertos escreve um texto belo e maduro. O que dizer, por exemplo, de O Mensageiro das Estrelas, em que ele anuncia as descobertas feitas a partir do seu telescópio?
Mas lacuna maior não há que esquecer o eterno Primo Levi, químico de profissão e conhecimento, que nos legou É isto um homem?. Esse é um livro essencial de memória e denúncia sobre os crimes dos nazistas em campos de concentração. Depois, em um terreno mais próprio da sua especialidade, digamos assim, Primo Levi publicou o livro de contos A Tabela Periódica. Essa obra foi escolhida como o melhor livro de ciência pela Royal Institution. Não quero cometer spoiler, mas adianto que o escritor associa atos e psicologias de personagens a cada elemento da tabela periódica. Coisa de gênio. Imaginem só alguém nos chamar de oxigênio…
2.
Entre nós, não podemos esquecer Mário Schenmberg, físico reconhecido em todo o mundo, crítico de arte e comunista, tudo junto em uma só pessoa. E o que dizer de Paulo Freire, pensador e cientista social que escrevia tão bem sobre a educação dos explorados e sobre o Recife em um poema lindo? E o que dizer de Josué de Castro em ser reconhecimento universal como cientista e escritor? E nem quero falar de Joaquim Cardozo, engenheiro calculista de gênio e poeta, igual ou maior que o calculista. Podem até dizer, matemático não é cientista. Mas não precisamos engrossar tanto a compreensão, estamos falando com gente civilizada, não com bolsonaristas.
Mas o buraco é mais fundo. A coisa é mais complicada. Deveríamos falar sobre escritores que escreveram ciência. Quero dizer, escritores no domínio da sua escrita, a escrever, narrar pessoas, de personagens, suas histórias, que foram cientistas de vanguarda. Em dúvida, olhem o que fez Honoré de Balzac ao escrever A Comédia Humana e a história econômica da França. Friedrich Engels já falou definitivo sobre isso. Pensem, e este é meu trunfo, pensem em Marcel Proust, com a sua descoberta sobre o tempo, sobre o gosto e recuperação de coisa antiga em um alimento, que recria e retoma uma época e nosso oprimido coração. Antes dele, tal sentimento existia, sem dúvida, mas jamais havia sido narrado de modo tão brilhante.
Penso na tragédia grega e suas sacadas de gênio sobre amor entre filho e mãe, sobre homossexualismo viril (o que vem da Odisseia), sobre o incesto entre irmãos. Penso em Tolstói e O Padre Sérgio, ao narrar a repressão do desejo sexual de um homem virtuosos em luta contra a própria ereção. E o que dizer dos seus romances que ficam entre a denúncia, a descoberta de crimes ocultos na sociedade (Ressurreição, por exemplo) e a iluminação desse eu miserável de que todos somos feitos? Escritores profundos e cientistas, acrescento.
*Urariano Mota é escritor e jornalista. Autor, entre outros livros, de Soledad no Recife (Boitempo). [https://amzn.to/4791Lkl]
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