Literatura e revolução

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Por CELSO FREDERICO*

A Rússia permaneceu sem conhecer uma revolução burguesa e o movimento populista acreditava que era possível realizar a transição para o socialismo fundados na sociedade fraterna e igualitária que já existiria na comunidade camponesa

1.

As relações entre literatura e política conheceram momentos decisivos no século XX. Um deles, “o debate sobre o expressionismo”, foi travado por intelectuais exilados que discutiram o significado político e cultural do expressionismo na Alemanha. Iniciado por György Lukács, o debate envolveu a participação de Ernest Bloch, Hanns Eisler e Bertolt Brecht. Tempos depois, as questões levantadas serviram de base para a crítica que Theodor Adorno fez a György Lukács.[i]

A polêmica sobre o expressionismo tinha como pano de fundo as manifestações artísticas que acompanharam revoluções russas de 1905 e 1917. Uma exuberante floração artística fez surgir uma infinidade de ruidosos grupos que afirmaram, cada um a seu modo, qual deveria ser a arte mais afinada com o processo revolucionário. Entre outros: Futurismo, Cubo-futurismo, Ego-futurismo, Proletkult, Produtivismo, Construtivismo, Imagismo, Acmeismo, Suprematismo, Rayonismo, Irmãos Serapião, etc.

A defesa da nova arte, reivindicada por esses grupos artísticos, implicava necessariamente em se fazer um ajuste de contas com o passado. Em seu estudo sobre as vanguardas artísticas Mario de Micheli observou que “até 1905 a arte e a literatura russa haviam sido fiéis sem vacilações com o realismo do século XIX” [ii] . Essa corrente artística dominante tinha suas especificidades: ela se desenvolveu numa sociedade marcada por profundas contradições sociais e forte repressão estatal.

Um observador atento como o historiador Isaac Deutscher afirmou que todos os gigantes da literatura não ficaram indiferentes à dilaceração do tecido social: “Tolstoi, Dostoiévski, Turguêniev e Chekov, fossem quais fossem suas opiniões particulares em política foram engagés. Cada um deles esteve profundamente preocupado com o modo pelo qual a sociedade russa se desenvolvia ou deixava de se desenvolver”.[iii]

A riquíssima produção literária russa foi acompanhada de uma crítica progressista que reuniu nomes importantes como Vissarion Bielinsky, presença maior da cultura durante a década de 1850. Depois dele, nas décadas seguintes, Nicolai Tchernichévski, Nicolai Dobroliúbov e Aleksandr Herzen radicalizaram a compreensão da arte ao concebê-la em sua função social-utilitária.

Desse modo, a crítica deixava de ser estritamente “literária” para tornar-se um meio de politização que, para driblar a censura, recorria à “linguagem esópica” (o mesmo recurso que Gramsci iria utilizar nos Cadernos do cárcere).[iv]

Todos eles constituíram a chamada “intelligentsia”, palavra russa que a partir de então se universalizou, não devendo ser confundida, com muitas vezes iria ocorrer, com “intelectuais”, pois seus membros, como esclareceu Isaiah Berlin, “se consideravam unidos por algo mais que o simples interesse pelas ideias; concebiam-se como uma ordem dedicada, quase como um sacerdócio secular, devotado à divulgação de uma atitude específica em relação à vida, algo como um Evangelho”.

Tratava-se de “um pequeno grupo de littérateurs, profissionais ou amadores, conscientes de estarem sozinhos num mundo árido, tendo de lado um governo hostil e arbitrário e, de outro, uma massa inteiramente desprovida de compreensão, formada por camponeses, oprimidos e mudos. Imaginavam-se um exército de compenetrados empunhado uma bandeira para que todos a vissem – a da razão e da ciência, da liberdade, de uma vida melhor […]. Além do mais, tinham aceitado a romântica doutrina de que cada homem é convocado para cumprir uma missão acima dos meros propósitos egoístas da existência material. Por terem uma educação superior à de seus irmãos oprimidos, tinham também o claro dever claro de ajuda-los rumo à luz [v]. Trótski, a propósito, afirmou que na Rússia “a crítica literária substituía a política e a preparava” [vi].

2.

Paralelamente, após o fracasso do levante dezembrista de 1825, que pleiteava uma democracia liberal à semelhança das europeias, surgiu uma sucessão de doutrinas políticas milenaristas, num ambiente marcado por forte repressão policial. O liberalismo, ao contrário dos países europeus, saiu de cena, ausência que assinala outra particularidade russa. Em 1848, o movimento revolucionário que sacudiu a Europa não teve nenhuma repercussão na Rússia, mas o tzar, temente que a agitação chegasse a seu país, ampliou ainda mais a repressão.

A Rússia, assim, permaneceu sem conhecer uma revolução burguesa, desprovida que estava de partidos políticos organizados. O “atraso”, era uma realidade que opôs os “eslavófilos”, que execravam o Ocidente e glorificavam a situação peculiar de seu país, distante das mazelas produzidas pela Revolução Industrial, aos “ocidentalistas,” interessados na modernização, liberalismo e democracia.

É nesse contexto que surgiu o movimento populista influenciado por diversos autores, entre eles, em primeiro lugar, Aleksandr Herzen. O movimento estava longe de ser homogêneo e as táticas variaram da doutrinação à ação terrorista direta.

É sempre lembrada a participação de Dostoiévski no Círculo Petrashevski. Por ter lido publicamente a carta que o crítico democrata Bielínski escreveu para Gógol criticando o seu conservadorismo, foi, por isso, condenado à pena de morte por fuzilamento, pena depois comutada em prisão com trabalhos forçados na Sibéria, onde o autor permaneceu durante oito anos. Tempos depois, as ideias socialistas foram substituídas pelo misticismo e Dostoiévski traçou uma imagem crítica dos antigos companheiros no romance Os demônios.

Apesar da variedade de tendências presentes naquele movimento, havia um ponto em comum entre eles: todos acreditavam que a sociedade fraterna e igualitária que perseguiam já existia embrionariamente na comunidade camponesa. A idealização desta serviu para balizar a identidade cultura russa e apresentar uma alternativa ao Ocidente.

Pensavam que, através dela, era possível realizar a transição para o socialismo, evitando a implementação do capitalismo, os horrores da acumulação primitiva e da Revolução Industrial e seus reflexos na vida espiritual (individualismo, racionalidade, fragmentação da personalidade etc.). Essa crença levou posteriormente muitos artistas a interpretar a revolução de 1917 como a redenção dos camponeses.

3.

A transição para o socialismo é tema controverso para o marxismo: o próprio Karl Marx não foi conclusivo sobre a necessidade da existência de um capitalismo desenvolvido como pré-condição para tornar o socialismo uma possibilidade objetiva. No prefácio à Contribuição à crítica da economia política, por exemplo, escreveu que as revoluções ocorrem tendo como base a contradição entre o avanço das forças produtivas e as relações de produção.

O desenvolvimento das forças produtivas e a formação de um vasto contingente de trabalhadores industriais, possibilitaria as condições para a revolução social, não sendo possível “saltar” etapas. Depois, em O capital, mostrou como o avanço do capitalismo destrói as bases da comunidade rural.

Vera Zasulich, populista russa, escreveu uma carta para Marx, em 1881, perguntando sobre a possibilidade de transição para o socialismo a partir da comunidade rural. Trata-se, disse ela, “de uma questão de vida ou morte, sobretudo para o nosso partido socialista. De uma forma ou de outra, também o destino pessoal de nossos socialistas revolucionários depende de sua resposta a essa questão” [vii]. Diante de tanta responsabilidade, Marx, já debilitado pela doença, escreveu quatro rascunhos de uma carta para, enfim, enviar a versão definitiva para posterior publicação, tal como lhe fora solicitado.

Argumentou então que o que escrevera em O capital sobre a dissolução do campesinato como decorrência necessária do capitalismo valia apenas para os países europeus, mas não para a peculiaridade russa onde as relações solidárias comunais eram fortes, a administração era democrática (a cargo de um conselho, o mir) e a terra era de uso comum. Com isso, ele descartou a tese da “inevitabilidade histórica”, deixando aberta a possibilidade de se construir o socialismo na Rússia a partir da comunidade rural, tal como preconizava o populismo.

Esse tema, futuramente, opôs Plekhanov a Lênin e este a Bogdánov. Lênin, em O desenvolvimento do capitalismo na Rússia afirmou, contra os populistas, que o capitalismo já era uma presença forte e irreversível. Nas famosas Teses de abril, contrariamente ao pensamento de Plekhánov e Bogdánov, conferiu centralidade à iniciativa política, capaz de ir além do rígido determinismo econômico, das “leis de ferro” da economia.

O jovem Gramsci, em 1917, escreveu à propósito o artigo A revolução contra O Capital – uma revolução que contrariava a leitura evolucionista da principal obra de Marx. A questão se reapresentou, logo mais, na revolução chinesa, no movimento anti-colonialista na África e nas lutas revolucionárias na América Latina: é possível “saltar” etapas?

4.

O “atraso russo” teve também consequências diretas no campo artístico. Enquanto na Europa as revoluções de 1848 assinalaram a passagem do realismo literário para o naturalismo, fenômeno conhecido pela problemática expressão “decadência ideológica”, na Rússia o realismo continuou vigorando com toda força. Essa persistência fez com que o realismo russo cumprisse o importante papel de crítica da ordem social.

A literatura adquiriu uma surpreendente centralidade: os principais dirigentes da revolução russa escreveram sobre literatura e o seu papel na nova sociedade e envolveram-se em acalorados debates. Literatura, portanto, tornou-se assunto público, diretamente relacionado com as escolhas políticas, e não mais expressão meramente artística restrita aos leitores-consumidores: outra peculiaridade russa que não ocorreu em nenhum outro país.

Por outro lado, a sombra do grande realismo russo tornou-se um desafio para os artistas de vanguarda que procuravam desvencilhar-se dessa pesada herança cultural, mas preservando as vezes a crítica social.

A repressão que se seguiu à revolução de 1905, contudo, gerou um ambiente de desalento e pessimismo entre os artistas que se voltaram não mais para a questão social, para a denúncia do atraso russo, mas para o “eu interior” e, assim fazendo, substituíram o realismo crítico pelas doutrinas místicas subjacente à diversas correntes literárias como, por exemplo, o simbolismo. Efetivava-se, assim, a ruptura com a tradição cultural realista, e o caminho ficava aberto para as experiências vanguardistas.

Dos inúmeros grupos artísticos formados no período os mais influentes foram os Futuristas, os Produtivistas/Construtivistas e o Proletkult. O confronto entre essas tendências não deve ser considerado um capítulo encerrado na história da arte, restrito ao período revolucionário em que surgiram para se perderem logo mais nas dobras do tempo. Ao contrário: as propostas estéticas então levantadas foram retomadas e desenvolvidas posteriormente em diversos países.

E muito menos elas se esgotaram no transcurso da revolução russa, pois os partidos de esquerda em todo mundo, ao projetarem suas políticas culturais tiveram como referência viva, nos mais diversos momentos, a experiência russa, já que as relações entre política e cultura se desenvolvem sempre dentro de possibilidades restritas. Desse modo, os debates ocorridos na Rússia revolucionária foram retomados, em momentos e lugares diferentes, como base para orientar as políticas culturais da esquerda.

*Celso Frederico é professor titular aposentado da ECA-USP. Autor, entre outros livros, de Ensaios sobre marxismo e cultura (Mórula). [https://amzn.to/3rR8n82]

Notas


[i] Todo o material referente a este episódio foi recolhido, traduzido e comentado no importante livro de MACHADO, Carlos Eduardo Jordão, Um capítulo da modernidade estética: debate sobre o expressionismo (São Paulo: Unesp, 2011, segunda edição).

[ii] MICHELI, Mario de. Las vanguardias artísticas del siglo XX (Madrid: Alianza Editorial, 1983, terceira edição), p. 262.

[iii] DEUTSCHER, Isaac. Ironias da História (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968), pp. 283-4.

[iv] BELINSKIJ, Vissarion. Scritti Scelti (Moscou: Progresso, 1981), DOBROLIOUBOV, Nicolai. Essais critiques (Moscou: Progresso, 1976), TCHERNYCHÉVSKI, Nicolai. Selected philosophical essays (Moscou: Foreign Languages Publishing House, 1963). Bruno Barretto Gomide organizou duas excelentes antologias com textos destes e de outros autores russos: Antologia do pensamento russo (1802-1901). (São Paulo: Editora 34, 2013) e Escritos de outubro (São Paulo: Boitempo, 2017).

[v] BERLIN, Isaiah. Pensadores russos (São Paulo: Companhia das letras, 1988), p. 126 e pp. 135-6.

[vi] TRÓTSKI, Leon. Literatura e revolução (Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1969), p. 180.

[vii] ZASULICH, Vera. “Carta para Marx”, in SHANIN, Teodor (org.), Marx tardio e via russa. Marx e as periferias do capitalismo (São Paulo: Expressão Popular, 2017), pp. 146-147.

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