Por RENATO DAGNINO*
Capitalismo de Plataforma vs. Cooperativismo Digital: a economia solidária pode libertar motoentregadores da exploração das BigTechs
1.
Tenho conversado com companheiros (e companheiras) envolvidos, como organizadores ou simpatizantes, com a “Conferência Temática em Economia Solidária Digital e Cooperativismo de Plataforma”, convocada pela Secretaria Nacional de Economia Popular e Solidária (SENAES) do Ministério do Trabalho e Emprego, acerca da conveniência da atuação do órgão na busca de alívio das vergonhosas condições de trabalho dos moto entregadores.
A Conferência, a realizar-se em 21/05/2025, integra o amplo conjunto de conferências locais e estaduais que estão decidindo sobre os temas e os delegados que estarão presentes, em agosto, na 4ª CONAES – Conferência Nacional de Economia Popular e Solidária.
A importância da inclusão do tema na agenda da Secretaria Nacional de Economia Popular e Solidária (SENAES), provavelmente refletindo o interesse de pesquisadores que tratam dos seus aspectos tecnológicos e sociais, pode ser estimada pelo fato de ela ser a única conferência temática proposta para tratar o assunto escolhido para a 4ª CONAES: “Economia Popular e Solidária como Política Pública”.
O objetivo deste texto é avaliar a pertinência dessa importância. O que é feito tendo em vista as características do assunto escolhido, a relevância de outros temas aparentemente, mas atinentes à missão da Secretaria Nacional de Economia Popular e Solidária, e a sua conhecida escassez de recursos materiais e humanos para tratá-los. E, na medida do possível, sugerir pontos a serem discutidos na Conferência Temática suscitados naquelas conversas.
Delas advém a proposição central tratada neste texto. Isto é, a de que o envolvimento da Secretaria Nacional de Economia Popular e Solidária com o tema das plataformas alternativas (às plataformas convencionais tributárias das bigtechs), que vem sendo referido através de expressões como economia solidária digital, economia digital solidária, plataformismo solidário, plataformização solidária, seria acertado e se justificaria devido aos seguintes aspectos:
(i) Os moto entregadores (denominação que inclui os que, na visão de empresas como o Uber, Ifood etc., são por eles contratadas) que usam as plataformas convencionais são a categoria profissional que mais cresce hoje no Brasil; (ii) eles formam um contingente de dois milhões de pessoas que enfrentam um alto grau de exclusão, têm um arraigado sentimento de aversão ao sistema que regula as relações capital-trabalho e, ao mesmo tempo, possuem uma invulgar consciência de sua condição de explorados e de impossibilitados de ascender.
(iii) O desenvolvimento de plataformas alternativas às convencionais, embora tecnologicamente pouco complexa, deve ser apoiada pela Secretaria Nacional de Economia Popular e Solidária; como também a superação das dificuldades de tipo político-organizacional para sua implantação apesar de exigirem uma atuação governamental sistêmica e relativamente intensiva em recursos humanos e materiais.
(iv) Uma avaliação de custo-benefício socioeconômico cotejando a implantação, expansão e generalização das plataformas alternativas com a melhoria das obscenas condições de trabalho e remuneração dos moto entregadores é, para um governo de esquerda, francamente favorável; (v) uma avaliação de custo-benefício político levando em conta a organização e potencial de mobilização dos moto entregadores, por um lado, e o escasso recurso da Secretaria Nacional de Economia Popular e Solidária, por outro, também é francamente favorável.
(vi) É semelhante o resultado de uma avaliação mais curto-prazista que, ao apontar que uma ação da Secretaria Nacional de Economia Popular e Solidária de beneficiá-los, embora afastando-a de seu escopo, pode levar a um acréscimo da governabilidade que a coalizão de governo precisa para seguir com a implementação do projeto da esquerda; (vii) também o é uma avaliação de custo de oportunidade que compara iniciativas visando ao desenvolvimento e implantação de plataformas alternativas (cujo apelo não é apenas socioeconômico e de superação do injusto velho “mundo do trabalho”, mas também tecnocientífico e inovativo) vis-à-vis aquelas que, com pouco recurso, buscam retomar o tempo desperdiçado depois do golpe de 2016.
(viii) Em que pese o fato de ela visar à economicidade, e em consequência possibilitar o aumento do rendimento do trabalhador, da prestação de um serviço (e não da produção de um bem), a experiência acumulada com as plataformas alternativas poderá alavancar as redes solidárias hoje nucleadas em torno da produção (material, vale ressaltar) de bens agrícolas ou artesanais e, ainda que em menor medida, industrial.
2.
A segunda parte deste texto procura fornecer elementos para aprofundar a avaliação acerca da conveniência de a Secretaria Nacional de Economia Popular e Solidária envolver-se com a atividade em pauta. Ou, alternativamente, buscar conquistar a atenção e o apoio de órgãos governamentais mais próximos a ela.
Até o aspecto vii, eu resumi ideias levantadas pelos companheiros e companheiras sobre as quais eu não teria muito a acrescentar. De qualquer forma, destacando que elas mereceriam ser discutidas na Conferência Temática, e antes de entrar no aspecto viii, mais controverso, adiciono comentários visando ao debate proposto.
O fato citado pelos colegas, do número de moto entregadores estar crescendo muito, não implica necessariamente que esta evolução tenda a se manter; como muitos dos moto entregadores não dependem para seu sustento somente desta sua atividade, isto fragiliza algumas das suposições causais assumidas acima; quanto à possibilidade de plataformas alternativas alterarem significativamente a remuneração dos moto entregadores, vale mencionar a recém anunciada parceria entre Uber e iFood e a provável entrada da chinesa Keeta no Brasil, que configuram movimentos do capital tendentes a baratear o custo do serviço dos moto entregadores.
Quanto à importância relativa dos dois milhões de moto entregadores, cabe considerar que (a) junto a outras 38 milhões de pessoas, eles constituem a chamada mão de obra informal, cujo tamanho, praticamente igual ao de trabalhadores com carteira assinada, é estimado em 40% da mão de obra ocupada (100 milhões) ou 25% da população em idade de trabalhar (mais de 150 milhões), por muitos considerada como sendo o tamanho da nossa classe trabalhadora; (b) se estima em 80 milhões o número de pessoas que nunca tiveram e provavelmente nunca terão emprego em empresas (carteira assinada), e que por isto, seriam o segmento preferencial das ações de promoção da economia solidária.
Quanto à possibilidade da atividade dos moto entregadores se incorporar à economia solidária através do uso das plataformas alternativas que vem sendo denominadas economia solidária digital, economia digital solidária, plataformismo solidário, plataformização solidária, cabe considerar que (i) a natureza da atividade (o serviço de entregar pessoas ou coisas) é pouco aderente aos atributos da economia solidária (solidariedade em vez de competição; propriedade coletiva, e não privada ou estatal, dos meios de produção; e autogestão).
(ii) O mesmo ocorre em relação à cultura da classe trabalhadora urbana empobrecida da qual eles provêm: embora apartados do modo de operação da empresa (ao qual se opõe a economia solidária), ele ainda permanece, idealizado, no seu imaginário; (iii) sua história de vida, a forma como são obrigados a trabalhar – individualmente e competindo -, tendo por base a propriedade ou aluguel do seu veículo, e sendo desafiados por metas que muitas vezes eles mesmos estabelecem.
3.
Com essas considerações, chego ao aspecto de número viii, sobre a possibilidade de que o envolvimento da Secretaria Nacional de Economia Popular e Solidária com a implantação de plataformas denominadas “Economia solidária digital” possa auxiliá-la a realizar sua finalidade precípua de alavancar as redes solidárias.
Seguindo o procedimento de itemização, destaco:
O “artefato sociotécnico” plataforma digital convencional, como muitas outras manifestações da dinâmica tecnocientífica capitalista, se origina de uma demanda cognitiva que se expressa no mercado envolvendo “oferentes e demandantes” de um bem ou serviço que nele se organizam seguindo a corrente sinérgica do capitalismo.
Como tal, ele é passível de ser reprojetado mediante as sete modalidades de adequação sociotécnica que vêm sendo propostas para, assim, subvertê-lo e integrá-lo à proposta da tecnociência solidária.
A conveniência de promover ações de adequação sociotécnica na direção do desenvolvimento de uma plataforma alternativa para alavancar redes solidárias deve considerar que (a) este artefato sociotécnico se orienta a atuar sobre a prestação de um serviço, mediante o emprego das tecnologias de informação e comunicação (TICs); (b) ele se destina a otimizar (claro que capitalisticamente) o serviço de entregar pessoas ou coisas demandado por uma parcela de renda bastante superior à média (mediana ou moda) de nossa população urbana, o que implica o privilegiamento de uma relação externa à economia solidária.
(c) Por atuar sobre um grande número de fatores relacionados a esse serviço, ele pode, mediante a modalidade de adequação sociotécnica proposta, facilitar a realização de atividades de redes solidárias envolvidas com a prestação de serviços demandados por aquela parcela da população; (d) a plataforma alternativa resultante pode atuar de modo semelhante ao pretendido pelo Contrata+, recentemente lançado para agilizar mediante a compra pública de MEIs mediante uma plataforma digital que possibilita a comunicação entre “oferentes e demandantes” não integrados à corrente sinérgica do capitalismo.
(e) A diferença, que serve de argumento para o apoio à ação pretendida pelos colegas, é que, no caso em pauta, os “demandantes” seriam as famílias que se dispuserem a contratar serviços que as redes solidárias podem oferecer; (f) e, muito importante, que isso seria feito mediante plataformas alternativas projetadas com esta finalidade a partir da experiência obtida com aquelas orientadas aos moto entregadores.
(g) Mantidas as condições de contorno, das quais a mais determinante e de difícil alteração é o baixíssimo valor do salário mínimo que indexa praticamente todas as remunerações, é pouco exequível um esforço regulatório que torne competitivo em relação ao da empresa, o arranjo baseado nas plataformas alternativas.
4.
Para terminar, convidaria aquelas companheiras e companheiros a uma última análise de custo de oportunidade.Ela partiria da consideração de que:
(i) A maioria das redes solidárias existentes estão nucleadas em torno da produção (material, vale ressaltar) de bens agrícolas ou artesanais e, especificamente, nas cidades, da agregação de valor ao lixo, o único bem que (ainda) não é propriedade privada no meio urbano.
(ii) A possibilidade de expansão, adensamento e completamento das redes solidárias de modo a serem competitivas com a empresa supõe que elas passem a se envolver com atividades produtivas de maior intensidade cognitiva (ou tecnológica); em especial aquelas que, questionando o parentesco herdado entre indústria e empresa, e inspirando-se na experiência da revolução industriosa, se alinhem com a reindustrialização solidária proposta como complementação da reindustrialização empresarial em curso (Nova Política Industrial) visando à produção, hoje limitada à empresa, de bens considerados com industriais.
(iii) A reorientação da compra pública dos bens e serviços produzidos pela empresa, que o Estado nos proporciona em troca do imposto que pagamos, e que representa cerca de 15% do PIB, é uma demanda que, pela sua viabilidade econômico-financeira e política, vem sendo colocada pelo movimento da economia solidária junto ao governo (e à Secretaria Nacional de Economia Popular e Solidária) com crescente intensidade.
(iv) O fato de que apenas 0,02% do PIB é alocado junto às redes solidárias exige uma primeira seleção, por parte da Secretaria Nacional de Economia Popular e Solidária (ou mediante os recursos cognitivos governamentais que ela pode mobilizar), dos produtos hoje comprados da empresa pelo Estado, que podem ir sendo paulatinamente adquiridos das redes solidárias.
(v) O desafio cognitivo envolvido com essa proposta, de grande complexidade, originalidade, relevância e abrangência, me parece ser bem mais coerente com a expertises dos companheiros e companheiras que acreditam que a experiência adquirida com o desenvolvimento e implantação de plataformas alternativas para os moto entregadores pode contribuir para o crescimento das redes solidárias e para a consecução da missão da Secretaria Nacional de Economia Popular e Solidária.
(vi) Referindo-me agora àqueles que, atuando na universidade se defrontam com a urgente necessidade de reorientar sua atividade na direção da alteração de suas agendas de ensino, pesquisa e extensão, e percebem que isto é imprescindível para dar a ela o sentido verdadeiramente público e democrático que pode viabilizar sua sobrevivência.
Enfrentar esse desafio, operando a adequação sociotécnica da tecnociência capitalista que “professoram” na direção da tecnociência solidária, colocará essas companheiras e companheiros mais perto da missão da Secretaria Nacional de Economia Popular e Solidária e de outros atores que buscam construir um futuro melhor. Ele exige uma radical mudança da nossa política cognitiva.
*Renato Dagnino é professor titular no Departamento de Política Científica e Tecnológica da Unicamp. Autor, entre outros livros, de A indústria de defesa no governo Lula (Expressão Popular). [https://amzn.to/4gmxKTr]
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