O povo do capital

Imagem: Donald Tong
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Por QUINN SLOBODIAN*

O DNA da direita radical: como teorias raciais e libertarianismo econômico criaram o monstro do neoliberalismo identitário

“Juntos, estamos promovendo um novo fusionismo que argumenta pela existência, como Mises já sabia, de vínculos férreos entre cultura, economia e política”
(Lew Rockwell).

Em 2006, o formulador de ideias Charles Murray, de longa data um defensor incansável de uma ciência racial revivida, fez o discurso principal em um “jantar de liberdade” que marcava o vigésimo quinto aniversário do centro internacional dos laboratórios de ideias neoliberais, a Atlas Economic Research Foundation.

Membro da Sociedade Mont Pelerin (SMP) desde 2000, Charles Murray usou seu tempo para apresentar a desgastada história sobre como Ronald Reagan e Margaret Thatcher criaram a oportunidade para que ocorresse a difusão das ideias de Friedrich Hayek, Ludwig von Mises e Milton Friedman.

Eis que essa explosão fora auxiliada pelas fundações Cato, Heritage e Hoover, assim como por dezenas de outros laboratórios de ideias ao redor do mundo, os quais a Atlas vinha promovendo. Pensando no futuro, Murray perguntou o que eles estariam discutindo daqui a vinte e cinco anos numa reunião da Atlas, a ser realizada em 2031, no seu quinquagésimo aniversário. Não seria a liberdade econômica, o livre comércio, o gênio do empresário ou qualquer um dos outros pontos salientes do roteiro neoliberal. Ele previu que eles falariam sobre ciência.

“Nos últimos quarenta anos”, disse ele, “o grito de guerra da esquerda tem sido ‘igualdade'”. Mas a ciência vai dar o golpe mortal nessa demanda impossível. “O crescimento explosivo do conhecimento genético”, disse ele, “mostra que, dentro de alguns anos, a ciência demonstrará definitiva e precisamente como as mulheres são diferentes dos homens, os negros dos brancos, os pobres dos ricos, ou, nesse caso, as maneiras pelas quais os holandeses são diferentes dos italianos.

“Como o inimigo, em sua raiz, vem a ser a reivindicação da igualdade humana, ele sustentou que a ciência será capaz de lhe dar o golpe de misericórdia. A confirmação de diferenças de grupo inextirpáveis deixaria um vazio “no universo moral da esquerda”, previu Charles Murray. “Se a política social não pode ser construída com base na premissa de que as diferenças entre os grupos humanos devem ser eliminadas, então sobre que base ela poderia ser construída?”

No mesmo ano em que deu a palestra, em um de seus raros artigos revisados por pares, ele argumentou que a persistência das diferenças de inteligência entre negros e brancos tornava a ação afirmativa insustentável.

Alguns anos depois, Charles Murray expandiu o tema em uma reunião da Sociedade Mont Pelerin, a qual foi realizada em um local exótico: as Ilhas Galápagos. O título do encontro era “Evolução, Ciências Humanas e Liberdade”; em consonância como ele, o título de sua palestra era “A redescoberta da natureza humana e da diversidade humana”. Abordava, assim, um processo em andamento que ocorria, conforme alegou, por causa das novas descobertas na genética. Por meio dele, haveria “reversões a velhos entendimentos sobre o animal humano”. Assim, certos preconceitos desacreditados seriam reconfirmados como verdades científicas.

Ele se debruçou sobre a questão das diferenças raciais. “Ao longo do século XIX e da primeira metade do século XX”, escreveu ele, “os antropólogos naturalistas aceitaram o conceito de raça com pouca dissensão”. A magnum opus de Carleton Coon, A Origem das Raças (1962), “não provocou indignação quando apareceu”, afirmou. (A afirmação não é verdadeira, já que “provocou uma enorme controvérsia na comunidade dos antropólogos”.)

Dois eventos produziram o que ele chamou de “oclusão intelectual da natureza humana e da diversidade humana nos Estados Unidos”: o movimento pelos direitos civis e o movimento feminista. Desde então, os desenvolvimentos políticos obscureceram as origens primordiais das diferenças não apenas entre as raças, mas também entre os sexos.

Apelando para a sociobiologia e a psicologia evolutiva desenvolvidas na Universidade de Harvard por E.O. Wilson, Robert L. Trivers e seus alunos, Leda Cosmides e John Tooby (os dois últimos que estavam presentes em Galápagos), Murray afirmou que as diferenças binárias de gênero, uma herança das savanas, foram conservadas.

Eis que os “homens que eram capazes de avaliar trajetórias em três dimensões – diga-se, de uma lança lançada em um mamífero comestível – tinham uma vantagem de sobrevivência”, disse ele no Equador. “As mulheres eram capazes de fazer associações mentais. Aquelas que conseguiam distinguir entre matrizes complexas de vegetação, lembrando-se das que eram plantas venenosas e das que eram nutritivas, também tinham uma vantagem de sobrevivência.

É por isso que, segundo ele, “habilidades visuoespaciais tridimensionais elevadas” para homens e “uma capacidade elevada de lembrar objetos e suas localizações relativas” para mulheres “aparecem em testes dessas habilidades até hoje”.

Voltar à natureza foi necessário para reafirmar as hierarquias afirmadas pela genética, mas constantemente desafiadas por movimentos sociais insurgentes e por ideologias progressistas. Quebrar tabus em torno das diferenças de raça e gênero era necessário não apenas para combater os efeitos perniciosos do que Charles Murray chamou de “premissa da igualdade”, mas para reconhecer e organizar melhor os padrões de aptidão em uma economia em processo de mudança.

Este livro argumenta que o apelo à natureza foi central na solução neoliberal de um problema que tinha de ser enfrentado nas décadas após a Guerra Fria. O comunismo estava morto nessa época, mas, como eles diziam, o Leviatã viveu. Os gastos públicos continuaram a se expandir mesmo quando o capitalismo se tornou o único sistema econômico sobrevivente. Por trás disso estava um problema político.

Os movimentos sociais das décadas de 1960 e 1970 injetaram o veneno dos direitos civis, do feminismo, da ação afirmativa e da consciência ecológica nas veias indefesas do corpo político. Uma atmosfera em que imperava o “politicamente correto” e a “vitimologia” embruteceu o discurso livre e alimentou uma cultura de dependência do governo, baseada em súplicas especiais. Os neoliberais precisavam criar de um antídoto.

Diante das demandas persistentes pela reparação das desigualdades às custas da eficiência, da estabilidade e da ordem, os neoliberais se voltaram para a natureza em questões de raça, inteligência, território e dinheiro. Era essa uma forma de erguer um baluarte contra as demandas invasoras dos progressistas e, esperançosamente, de reverter as mudanças sociais, retomando as hierarquias de gênero e de raça. Dito de outro modo, tratava-se de reestabelecer as diferenças culturais que eles imaginavam estarem enraizadas na genética e na tradição.

Os neoliberais sempre se preocuparam com as condições extraeconômicas para a sobrevivência do capitalismo, mas geralmente se concentravam na lei, na religião e na moralidade. A crescente influência das ideias de evolução cultural de Friedrich Hayek, assim como a popularidade dominante da neurociência e da psicologia evolutiva levaram muitos a se voltarem para as ciências ditas duras e mais difíceis.

A mudança demográfica – que passou a combinar uma população branca envelhecida com uma população não-branca em expansão – fez com que alguns neoliberais e libertários de direita repensassem as condições necessárias para o capitalismo. Talvez algumas culturas, e até mesmo algumas raças, possam estar predispostas ao sucesso no mercado, enquanto outras não! Talvez a homogeneidade cultural fosse uma pré-condição para a estabilidade social e, portanto, a conduta pacífica das trocas de mercado e o gozo da propriedade privada!

Denomina-se aqui a nova linhagem do movimento neoliberal que se cristalizou na década de 1990 de “novo fusionismo”. Enquanto o fusionismo original das décadas de 1950 e 1960 e a Nova Direita fundiram libertarianismo com o tradicionalismo religioso no estilo de William F. Buckley e da National Review, o novo fusionismo defendeu as políticas neoliberais por meio de argumentos emprestados da psicologia cognitiva, comportamental e evolutiva e, em alguns casos, da genética, da genômica e da antropologia biológica.

Já em 1987, o historiador conservador Paul Gottfried, que cunhou com Richard Spencer o termo “direita alternativa”, identificou esse novo fusionismo no campo intelectual da direita. Enquanto os conservadores mais velhos usavam uma linguagem religiosa para apoiar as suas alegações sobre as diferenças humanas, Gottfried deu por certo que, agora, começar-se-ia a usar disciplinas como sociobiologia. Essa suposta cientificidade fora criada pelo ecologista E.O. Wilson para – em suas próprias palavras – “biologicizar” as questões da ética humana. O novo fusionismo usa a linguagem da ciência para justificar a extensão da dinâmica competitiva cada vez mais profunda na vida social.

Reação frontal, não apenas uma reação

Ao examinar a ascensão do novo fusionismo chega-se a uma nova história do ressurgimento da extrema direita nos últimos anos. Embora tenha se tornado usual apresentá-la como uma “reação” contra as forças da globalização neoliberal, ao mostrar as coalizões improváveis, tais como descritas neste livro, obtém-se uma imagem diferente. Como será visto, os novos fusionistas formaram alianças com defensores do tradicionalismo, do nacionalismo e da heterogeneidade cultural.

Entre os novos fusionistas, encontram-se os autodenominados “paleolibertários”, os quais buscaram construir suas teses extremistas sobre o alicerce da biologia e das diferenças supostamente imutáveis. Os neoliberais de direita que aderiram e, em alguns casos, fundaram novos partidos populistas, não rejeitaram a dinâmica da competição de mercado; eles se esforçaram para aprofundá-la.

Os libertários que pregam o “fechamento das fronteiras” continuaram a exigir a livre circulação de capital e de bens; eles simplesmente querem criar uma barreira bem rígida contra certos tipos de pessoas. Como argumento num capítulo deste livro, a demanda por um etnoestado foi mais bem entendida como a demanda por uma “etnoeconomia”.

O novo fusionismo ganhou força na desorientação da era que se seguiu ao fim da Guerra Fria. Os estudos existentes sobre o neoliberalismo explicam mal o período em que os neoliberais estavam supostamente no auge: as décadas de 1990 e 2000. Foi então, tem sido dito, que os neoliberais derrotaram os seus inimigos, que venceram a batalha contra o comunismo e que recrutaram as instituições financeiras internacionais para realizar o seu projeto de mudança mundial.

Pode-se desculpar os analistas por suporem que não havia muito mais a explicar. Os neoliberais parecem ter passado a década polindo os bustos de Mises e Hayek para serem colocados em bibliotecas e praças em toda a Europa Oriental e se regozijando com suas vitórias. Mas não foi isso o que aconteceu. De fato, olhando para trás, para as reuniões dos neoliberais feitas após a queda do Muro de Berlim e após o colapso soviético, descobre-se algo surpreendente. Eles pareciam temer que o ânimo da Guerra Fria estivesse perdido.

“Afigura-se bem apropriado que a Sociedade Mont Pelerin, o principal grupo mundial de estudiosos do livre mercado – tal como relatou o Wall Street Journal em setembro de 1991 – tenha se reunindo na mesma semana em que o comunismo entrou em colapso na União Soviética”. Contudo, os ali reunidos viram outra ameaça no horizonte: à medida que “o comunismo saia do palco da história, a principal ameaça à liberdade poderia estar vindo de um movimento ambiental utópico que, como o socialismo, subordina o bem-estar dos seres humanos a supostos valores ‘superiores'”.

O comunismo lhes parecia um camaleão. Eis que estava já mudando de pele: de vermelho, ele se tornava verde agora. “Tendo lutado contra uma maré vermelha, agora corremos o risco de ser engolidos por uma maré verde”, alertou Fred Smith, do Competitive Enterprise Institute, em uma reunião da Sociedade Mont Pelerin uma década depois. “As forças que antes marchavam sob a bandeira do progressismo econômico se reagruparam agora sob uma nova bandeira ambiental.”

Entrevistado em 1992 pelo jornalista Peter Brimelow, que depois se tornou um incendiário da restrição de cidadania, Milton Friedman expressou um sentimento semelhante. Questionado sobre o fim da Guerra Fria, ele respondeu: “Veja-se a reação nos EUA ao colapso do Muro de Berlim… Não houve ainda nenhuma reunião de cúpula em Washington sobre como reduzir o tamanho do Estado.

Veja-se, continuou: o que foi tratado numa reunião de cúpula recente? Tratou-se de saber como aumentar os gastos do governo. O que vem fazendo o presidente supostamente de direita, Sr. Bush? Ele vem tratando de temas que requerem enormes incrementos no paternalismo – a Lei do ar limpo e a Lei dos Americanos com Deficiências, o chamado Projeto de lei de cotas dos direitos civis. Eis que Friedman via a proteção ecológica e os “interesses especiais” das pessoas com deficiência e minorias como as áreas de crescimento do estatismo pós-comunista.

O Leviatã ainda vive

“O inimigo sofreu uma mutação”, escreveu a economista Victoria Curzon-Price, uma das três únicas presidentes mulheres da Sociedade Mont Pelerin Society. “Em 1947, os fundadores de nossa agremiação lutaram contra o comunismo absoluto, contra o planejamento e contra o keynesianismo. Hoje nossos oponentes são mais evasivos.”

Na primeira reunião da Sociedade Mont Pelerin após a queda do muro em Berlim, realizada em uma viagem de trem em Munique, o presidente e economista italiano Antonio Martino declarou que “o socialismo está morto, mas o estatismo não”. Para ele, as três maiores ameaças agora eram o ambientalismo, os gastos estatais e a integração europeia. De imediato, então, os ali presentes ouviram que o esgotamento da camada de ozônio poderia muito bem ser devido aos leitos das algas, às correntes oceânicas e aos vulcões, tanto quanto da atividade humana.

Para ele ainda, o mais premente era o problema da Europa. As instituições supranacionais, que antes prometiam ser os motores do que Curzon-Price chamou de “modelo Ferrari de integração” – já que acelerariam a competição nos mercados de trabalho, de produtos e das finanças – provaram ser cavalos de Tróia socialistas. A relação inversa entre a unificação da Europa e a dissolução do bloco soviético pareceu estranho e assustador para muitos libertários.

Eis o que disse o historiador alemão da ciência, Gerard Radnitzky, na reunião da Sociedade Mont Pelerin em Munique: “A criação de um superestado europeu se mostraria uma ironia da história. Pois, ele surgia justamente no momento em que os países ‘pós-socialistas’ estavam tentando desmontar o socialismo, fazendo assim a transição para a liberdade. Dessa maneira, estar-se-á embarcando no caminho de mais governo e mais burocracia, rumo a um socialismo rastejante em que prevalecerá menos liberdade e menos crescimento”.

A Europa era apenas parte do problema. “O Leviatã não apenas continua vivo”, escreveu Radnitzky, “mas ele vem crescendo”. Na reunião do ano seguinte, o novo presidente, o economista Gary Becker da Universidade de Chicago repetiu o refrão: “A missão da Sociedade Mont Pelerin parece ter sido cumprida amplamente com o colapso do comunismo na maior parte da Europa Oriental… Mas, infelizmente, ainda há muito a ser feito. A grande maioria das populações do mundo ainda vive em países que restringem drasticamente as liberdades econômicas e políticas. E mesmo nos países democráticos da Europa Ocidental, dos EUA e de outros lugares, o controle governamental e a regulamentação das atividades econômicas estão se expandindo, não se contraindo”.

Parte do problema para os neoliberais era que eles estavam tão concentrados em seu oponente que não gastaram tempo suficiente refletindo sobre como seria o primeiro dia em que a sua utopia se realizaria. O dilema neoliberal no final da Guerra Fria era que décadas de “coletivismo” e dependência do Estado – mesmo no mundo capitalista – haviam corroído as virtudes da autossuficiência que permitiriam a reprodução da vida social.

Falando na reunião do quinquagésimo aniversário da Sociedade Mont Pelerin no Instituto Hoover, em 1997, o presidente da Fundação Bradley, membro da SMP, Michael S. Joyce, disse que “a nossa atenção vem falhando consistentemente em se concentrar em uma realidade muito importante e muito preocupante. Se tivermos forças políticas amanhã para desmantelar o estado de bem-estar social e se começássemos efetivamente a desmantelá-lo, enfrentaríamos um fato assustador, mas inevitável: por trás do estado de bem-estar social, não há quase nada.

A própria lógica dos neoliberais dizia que a dependência produzida pelo estado-babá havia deixado raízes tênues no denso tecido conjuntivo da comunidade e da família. “Os mecanismos socais que existiam antes do estado de bem-estar social e que, em certa medida, funcionavam bem, agora sumiram”, observou Joyce. Isso vem a ser um problema: “a promessa difusa e atraente de que o setor privado e o livre mercado preencherão a lacuna instantaneamente – tal como Atena nascera de Zeus –, que substituirão o estado de bem-estar social, tornando a nova ordem aceitável para nossos cidadãos, é uma quimera total”.

Ora, aqui se encontra algo notável. Não se tratava apenas do fato que os neoliberais estavam negando que haviam vencido a Guerra Fria. Pois, eles estavam com medo da realidade que resultara do que eles realmente tinham feito.

O ópio social e o animal humano

Charles Murray expandiu esse tema em um artigo que circulou na reunião da cem Cancún, México, em 1996. Eis o que então disse: já que “uma reforma liberal radical… agora parece potencialmente ao alcance nos Estados Unidos”, os neoliberais precisavam pensar sobre o seguinte ponto: “como um estado liberal pode lidar com o sofrimento humano que persiste depois que as políticas liberais passam a vigorar”.

Charles Murray estava sem dúvida bem ciente do processo enormemente perturbador que estava sendo desencadeado pela terapia de choque econômico na Rússia pós-soviética. Por isso, em seu escrito, ele citou com aprovação a analogia de Herbert Spencer da sociedade a um ser humano viciado em drogas: “a transição da beneficência estatal para uma condição saudável de autoajuda e beneficência privada deve ser vista como uma transição de uma vida comedora de ópio para uma vida normal – dolorosa, mas corretiva. “

O parágrafo em que consta essa citação se mostrou ainda mais brutal em seu caráter de eugenia negativa. Herbert Spencer, em 1898, escrevera o seguinte: “Tendo, por meio de instituições imprudentes, trazido à existência muitas pessoas que não estão adaptadas às exigências da vida social e, consequentemente, são fontes de miséria para si mesmas e para os outros, não se pode, sem infligir muita dor, reprimir e reduzir gradualmente esse corpo de pessoas relativamente inúteis. O mal foi feito e a penalidade deve ser aplicada”.

Aqui ele trata o bem-estar e a assistência estatal como “consumo de um ópio social” que apenas produz atraso e que requer uma inevitável retirada da condição de “miséria”. Pode-se esperar, no entanto, segundo ele, que o viciado ainda possa se recuperar. Charles Murray apontou então que muitos neoliberais já alegaram que “os últimos trinta anos foram uma aberração que ia contra a natureza humana; assim, tudo o que é necessário para voltar à condição saudável é parar de ministrar o veneno, deixando que comece o processo da cura”.

No entanto, essas lições permaneceram como hipotéticas. Eis que “os estudiosos ainda precisam desenvolvê-las com dados”. Justamente porque os neoliberais estavam tão perto do sucesso é que eles precisavam olhar com clara visão para a dolorosa transição do socialismo para outra forma de sociedade. A recuperação das massas se afigurava como possível; tal como ocorria no cálculo de Herbert Spencer, o problema que precisa de solução não vem a ser a própria existência da população dependente?

Na década de 1990, neoliberais e libertários argumentaram que a sociedade futura tinha que ser construída a partir do zero. Era necessário retornar aos primeiros princípios, era preciso abrir uma ampla discussão sobre a condição humana e os pré-requisitos para a ordem do mercado. Era, pois, necessário que ocorresse uma mudança de foco. “É de extrema importância que nos afastemos da tendência de dar muito peso a questões puramente econômicas”, escreveram Pascal Salin e Henri Lepage, membros da Sociedade Mont Pelerin.

“Devemos diversificar nossa visão intelectual, recorrendo mais a acadêmicos de outras disciplinas: historiadores, filósofos, cientistas políticos, advogados, antropólogos. A escolha de tópicos deve ser ampliada para questões mais filosóficas, políticas ou sociológicas”.

Trata-se de apelar para a ciência e para o retorno à natureza. “Grande parte do pensamento liberal assumiu – escreveu Charles Murray – que o liberalismo era adequado, em todos os lugares e em todas as circunstâncias, para o animal humano. “Se as instituições liberais estiverem em vigor, o comportamento correto será observado inexoravelmente. Talvez seja mais difícil pôr essas instituições em algumas culturas do que em outras, mas, uma vez postas, elas farão sua mágica. Será esse realmente o caso? Estou cautelosamente otimista. Acho que, a longo prazo – no correr dos séculos talvez – a suposição se mostre de fato verdadeira. Mas essa tese parece ser bem menos verdade no curto prazo”.

A Rússia pode se tornar um estado liberal próspero no futuro previsível, pouco importando quais leis sejam colocadas no texto de sua Constituição? O Irã pode? A Tanzânia pode? O Peru pode? Ao listar esses países, enfatiza-se quão diferentes são os obstáculos culturais que cada um deles precisa superar.

Murray escreveu, então, que “agora, está além de disputa científica séria a questão de saber se muitas das capacidades humanas individualizadoras são fixadas antes que uma pessoa atinja uma idade em que tenha qualquer controle sobre o seu futuro…. Da influência atribuível ao ambiente após o nascimento, tem-se que muito é determinado nos primeiros anos de vida – provavelmente nos primeiros meses de vida.

Ora, essa combinação de influências genéticas e ambientais iniciais é tão poderosa que os escores de QI se estabilizam por volta dos seis anos de idade, ou seja, antes que a pessoa possa ser considerada como um ator moralmente independente. As vantagens que levaram à prosperidade a longo prazo foram implantadas profundamente em culturas específicas e não puderam ser extraídas ou replicadas facilmente.

Libertarianismo evolucionário

Gerard Radnitzky elaborou sobre esse tipo de abordagem ao afirmar que o “libertarianismo evolucionário” de Hayek e da escola austríaca tem, como “o seu princípio central, a afirmação de que existe uma natureza humana e que ela provém de nossa herança filogenética”. Contra isso, ele apresentou a crença socialista de que o ser humano era “uma lousa em branco cuja herança filogenética é insignificante em comparação com a influência sobre ele do ambiente social”. Se isso era um fundamentalismo de mercado, ele estava firmemente ancorado na ciência da natureza e na diferença humana que ela mostra existir.

Como Radnitzky, muitos novos fusionistas se inspiraram na imersão de Hayek nos temas da evolução, moralidade e demografia no final de sua vida. Como o primeiro capítulo deste livro argumenta, não se pode entender o status duradouro desses temas nas discussões neoliberais sem a unção de Charles Murray como professor emérito na cadeira Friedrich Hayek dos estudos culturais do American Enterprise Institute. No entanto, no que vem a seguir, questiono a legitimidade dessa ascendência intelectual reivindicada por esses pensadores de segunda geração.

Em 1993, o intelectual canadense John Ralston Saul contou em livro a tortuosa história da razão e da racionalidade na filosofia e na política ocidentais em um livro que denominou de Bastardos de Voltaire. Faço aqui uma homenagem parcial a este livro que significou tanto para mim quando adolescente, na época em que eu vasculhava as prateleiras de livrarias usadas em uma ilha na extremidade oeste da América do Norte. Apelido o elenco de personagens que discuto de Bastardos de Hayek porque muitos caem nos erros intelectuais que o próprio Hayek diagnosticou como tolos.

Acima de tudo, para Hayek, está o perigo do que ele chamou de “cientificismo” e de “pretensão de conhecimento”. Intencionalmente ou não, esses pensadores secundários prestam um tributo pobre ao seu mestre. Como mostram os capítulos posteriores, aqueles que se voltaram mais para o professor de Hayek, Ludwig von Mises, como seu centro de gravidade intelectual, também muitas vezes interpretaram mal e esticaram os escritos de seu mentor para se adequarem à sua política.

O objetivo aqui não é salvar a honra dos sábios da escola austríaca, mas mostrar como as suas ideias são agora instrumentalizadas, adaptadas e transformadas em armas, como assumem formas diferentes em diferentes contextos, ao mesmo tempo em que as mutações de geração para geração são devidamente escondidas.

A cientificação do pensamento neoliberal no novo fusionismo é mais uma reviravolta no argumento dominante desde a década de 1930, segundo o qual o neoliberalismo não é tanto uma doutrina do mercado quanto uma doutrina do que alguns deles chamam de metamercado. A fuga para a natureza do homem é uma tentativa de fundamentar o neoliberalismo em algo além do social. Uma figura-chave no novo fusionismo da teoria racial e do libertarianismo foi o próprio Charles Murray, um membro assíduo da Sociedade Mont Pelerin. Como libertário declarado, ele fundiu conhecimentos genéticos com conversas sobre valores familiares por mais de duas décadas e se tornou amado pela direita racialista.

Mais diretamente engajado no campo da política estava o economista austríaco Murray Rothbard, também membro da Sociedade Mont Pelerin, que se autodenomina de libertário. Sabe-se que ele foi conselheiro do candidato presidencial republicano Patrick J. Buchanan e que delineou uma estratégia de “paleopopulismo” no início dos anos 1990. Tratava-se de encontrar uma forma de usar a democracia eleitoral como uma transição para atingir o objetivo libertário de construir uma sociedade sem Estado. Ele defendeu de modo bem duro que existem diferenças raciais; eis que ele viu a dissolução da Iugoslávia, por exemplo, como evidência de que a secessão para nações culturalmente homogêneas era a única forma viável de organização social.

O herdeiro intelectual de Rothbard, Hans-Hermann Hoppe, um palestrante frequente nas reuniões da Sociedade Mont Pelerin, radicalizou ainda mais o programa de seu mentor, difamando a democracia como “o deus que falhou”. Ele propôs também explicações raciais para os padrões de comportamento econômico, havendo criado fóruns para intercâmbio entre teóricos da eugenia, secessionismo étnico e economia austríaca. Hoppe atuou nos Estados Unidos e na Europa Central, fazendo ponte para membros dissidentes da SPS na Alemanha e na Áustria, os quais buscavam criar suas próprias alianças à direita dos partidos tradicionais para neutralizar a integração europeia e a ameaça demográfica da imigração não-branca.

Na Alemanha, a posição racialista da direita se cristalizou na figura improvável de um social-democrata de carteirinha e membro do conselho do Banco Central europeu. O livro de Thilo Sarrazin, Germany Abolishes Itself, publicado 2010,vendeu mais de 1,5 milhão de cópias. Eis que se baseia no mesmo corpo de pesquisa de Murray, Rothbard e Hoppe para defender as diferenças raciais no que se refere à capacidade cognitiva.

A síntese de Sarrazin sobre o livre comércio, a política monetária independente e o racismo biológico foram o núcleo intelectual que alimenta o partido insurgente Alternativa para a Alemanha (AfD) e o Partido Austríaco da Liberdade. A retórica de Hoppe, que elabora sobre a supressão violenta das diferenças, assim como sobre um programa de separação das raças, foi adotada pela extrema direita.

A atenção ao novo fusionismo e aos bastardos de Friedrich Hayek ajuda a esclarecer alguns dos confusos enquadramentos da política nos últimos anos. Desde as surpresas políticas como a votação do Brexit e a vitória de Trump em 2016, tem havido uma história teimosa que explica o chamado populismo de direita como uma rejeição popular do neoliberalismo.

Este ideário de direita, assim, passa muitas vezes a ser descrito como um fundamentalismo de mercado ou como uma crença de que tudo no planeta tem um preço, que as fronteiras são obsoletas, que a economia mundial deve substituir os estados-nação, e que a vida humana é redutível a um ciclo de ganhar, gastar, pedir emprestado, morrer. Essa “Nova” Direita, por outro lado, afirma acreditar no povo, na soberania nacional e na importância da cultura. À medida que os partidos tradicionais perdem apoio, as elites que promoveram o neoliberalismo por interesse próprio parecem estar colhendo os frutos da desigualdade e do enfraquecimento da democracia que semearam.

Mas, como este livro ajuda a deixar claro, esta história não captura toda a verdade. Olhando mais de perto, pode-se ver que facções importantes da direita emergente eram, de fato, cepas mutantes do neoliberalismo original. Os partidos apelidados de populistas de direita, dos Estados Unidos à Grã-Bretanha e à Áustria, raramente se tornaram anjos vingadores que estão aí para ferir a globalização econômica. Eles oferecem poucos planos para controlar as finanças, restaurar uma era de ouro de segurança no emprego ou acabar com o comércio mundial. Em geral, os chamados apelos populistas para privatizar, desregulamentar e reduzir impostos vêm direto do manual compartilhado pelos líderes mundiais nos últimos trinta anos.

De modo bem mais fundamental, é preciso entender que pensar o neoliberalismo como uma mera mercantilização hiperbólica e apocalíptica de tudo é algo que se mostra bem vago e enganoso. Como muitos casos agora mostram, longe de evocar uma visão do capitalismo sem Estados, os neoliberais reunidos em torno da Sociedade Mont Pelerin, fundada por Hayek – ele usou o termo “neoliberalismo” como autodescrição na década de 1950 –, refletiram por quase um século sobre como o Estado precisa ser repensado para restringir a democracia sem eliminá-la e como as instituições nacionais e supranacionais podem ser usadas para proteger a competição e a troca mercantil. Quando se passa a ver o neoliberalismo como um projeto de reequipar o Estado para salvar o capitalismo, enxerga-se que ele não vem a ser uma suposta oposição ao populismo da direita.

Tanto os neoliberais quanto a nova direita desprezam o igualitarismo, a igualdade econômica global e a solidariedade além da nação. Ambos veem o capitalismo como inevitável e julgam os cidadãos pelos padrões de produtividade e eficiência. Talvez o mais impressionante seja que ambos se baseiam no mesmo panteão de heróis. Um deles é o próprio Hayek, que se tornou um ícone em ambos os lados da divisão neoliberalismo/populismo de direita.

Falando ao lado de Marine Le Pen no congresso do partido da Frente Nacional Francesa, em 2018, o autodenominado populista Steve Bannon condenou o “establishment” e os “globalistas”; construiu o seu discurso em torno da própria metáfora de Hayek do caminho para a servidão e invocou a autoridade contida no nome do mestre. “O governo central, os bancos centrais, as empresas centrais de tecnologia capitalistas de compadrio controlam as pessoas e as levam para um caminho de servidão e o fazem de três maneiras”, disse ele. “Os bancos centrais se esforçam para rebaixar o dinheiro, o governo central busca rebaixar a sua cidadania e os poderes tecnológicos capitalistas de compadrio se empenha em rebaixar a sua própria personalidade. Hayek disse que o caminho da servidão passa por esses três canais.

Menos importante do que a ligação quase imperceptível com a escrita real de Hayek foi o apelo reflexivo de Bannon ao pensador austríaco como argumento de autoridade. Em Zurique, na semana anterior, Bannon também convocou Hayek. Lá ele foi recebido por um editor de jornal, um político de direita do Partido do Povo Suíço e membro da Sociedade Friedrich Hayek, Roger Koppel, que o presenteou com a primeira edição de seu jornal, WirtschaftsWoche. Ao fazê-lo, sussurrou em voz baixa que fora publicado “em 1933” – numa época em que esse mesmo jornal apoiava a tomada do poder pelos nazistas.

 “Deixem que nos chamem de racistas”, disse Steve Bannon em seu discurso, “deixem que nos chamem de xenófobos. Deixem que nos chamem de nativistas. Usem esses epítetos como distintivos de honra. O objetivo dos populistas, disse ele, não era maximizar o valor para o acionista, mas “maximizar o valor da cidadania”. Isso soou menos como uma rejeição do neoliberalismo do que como um aprofundamento da lógica econômica no coração da identidade coletiva.

Enquanto estava na Europa, Bannon também se encontrou com Alice Weidel, ex-consultora do Goldman Sachs e uma das duas líderes do partido populista de direita, Alternativa para a Alemanha (AfD), vinculação que conjuga com a de membro da Sociedade Friedrich A. Hayek da Alemanha, pelo até o início de 2021.

Pode-se mencionar ainda um outro membro da AfD, um blogueiro libertário e consultor do mercado de ouro, Peter Boehringer, cuja história também é contada detalhadamente neste livro. Ele também é membro da Hayek Society, delegado no Bundestag de Amberg, na Baviera, e presidente do comitê parlamentar de orçamento.

Em setembro de 2017, o veículo que fora de Bannon, Breitbart.com, publicou uma entrevista com Beatrix von Storch, vice-líder do partido AfD, mas também membro da Hayek Society. Ela explicou como Hayek inspirou seu forte compromisso de “reabilitar a família”. Na vizinha Áustria, a negociadora da coalizão de curta duração do Partido da Liberdade Austríaco de direita com o Partido Popular Austríaco foi a diretora do Instituto Hayek de Viena, Barbara Kolm.

Os três ramos duros dos novos fusionistas

Naomi Klein descreveu de forma memorável o neoliberalismo como uma “doutrina de choque”: atacar em tempos de desastre, destruir e vender serviços públicos e transferir o controle dos estados para as corporações. O consenso de Washington descrito pelo economista John Williamson, em 1989, é talvez o exemplo mais famoso de solucionismo neoliberal: uma lista de dez itens obrigatórios para os países em desenvolvimento, que vão desde a reforma tributária até a liberalização do comércio e a privatização.

Nessa perspectiva, o neoliberalismo pode parecer um livro de receitas, uma panaceia ou mesmo uma panaceia de grande dimensão. Mas os próprios escritos dos neoliberais oferecem uma imagem diferente – e é aí que se deve ir para dar sentido às manifestações políticas aparentemente contraditórias. Quando isso é feito, descobre-se que o pensamento neoliberal não está cheio de soluções, mas pleno de problemas.

Os juízes, os ditadores, os banqueiros ou os empresários podem ser guardiões confiáveis da ordem econômica? As instituições devem ser feitas ou devem crescer espontaneamente? Como os mercados podem ser aceitos pelas pessoas diante de inerente e frequente crueldade? Radnitzky capturou bem o quebra-cabeça na epígrafe de seu artigo da reunião da SPS em Munique. Ele citou Anthony de Jasay: “O último dilema da democracia é que o Estado precisa, mas não pode, retroceder”.

Os neoliberais sempre discordaram sobre quais instituições protegeriam o capitalismo da democracia. Alguns defenderam um retorno ao padrão-ouro, enquanto outros argumentaram que as moedas deveriam ser livres para flutuar. Alguns lutaram por fortes políticas antitruste, outros aceitaram algumas formas de monopólios. Alguns pensam que as ideias deveriam circular livremente, outros defendem fortes direitos de propriedade intelectual.

Alguns pensam que a religião é uma condição necessária para uma sociedade liberal, outros a veem como dispensável. A maioria vê a família tradicional como a unidade econômica e social básica, mas outros discordavam. Alguns veem o neoliberalismo como uma questão de elaboração de uma constituição correta, outros veem a constituição democrática como – lembrando aqui de uma metáfora memorável de Jasay que apela ao gênero – “um cinto de castidade cuja chave está sempre ao alcance do usuário”.

Em comparação com outros movimentos políticos e intelectuais, no entanto, a coisa mais notável que se observa dentro do movimento neoliberal vem a ser a ausência de sérias divisões sectárias. Nas décadas de 1940 a 1980, o centro mais ou menos se manteve. O único grande conflito interno veio no início dos anos 1960 com o afastamento de um dos principais pensadores do movimento, aquele que foi chamado de pai intelectual da economia social de mercado, o economista alemão Wilhelm Ropke.

O seu caso prenunciou os conflitos posteriores. Eis que o racha entre Ropke e os outros neoliberais aconteceu em meio à sua defesa estridente do apartheid na África do Sul, assim como a sua adoção das teorias de racismo biológico. Eis que essas teorias postulavam a cultura ocidental comum e a hereditariedade compartilhada como pré-condição para uma sociedade capitalista funcional. Embora a aceitação aberta da branquitude tenha sido uma posição atípica na década de 1960, este livro mostra que ela voltaria a dividir os neoliberais nas próximas décadas.

No início dos anos 1980, Hayek começou a falar da tradição como um ingrediente necessário para a “boa sociedade”. A questão da existência de fronteiras entre grupos definidos pela tradição tornou-se uma aposta de alto risco. Diante da Heritage Foundation, ele falou em 1982 sobre “nossa herança moral” como base para sociedades de mercado saudáveis. Em 1984, ele escreveu que “devemos retornar a um mundo em que não apenas a razão, mas em que a razão e a moral se encontram como parceiros iguais; ambas devem governar as nossas vidas. Por verdade da moral, ele entendia simplesmente uma tradição moral, a do Ocidente cristão, que criou a moral na civilização moderna”.

A implicação dessa tese era clara. Algumas sociedades desenvolveram os traços culturais da responsabilidade pessoal, da engenhosidade, da ação racional, assim da preferência temporal pelos períodos mais curtos; outros não. Como essas características também não eram facilmente importadas ou transplantadas, essas sociedades menos evoluídas culturalmente – em outras palavras, o mundo em desenvolvimento – precisariam passar por um longo período de aprendizagem antes de alcançar o Ocidente. E esse era um destino que ele não garantia que pudesse ser de fato alcançado.

As crises que se seguiram a 2008 criaram as condições para novas mutações do pensamento neoliberal – bem como para novos cismas. A chegada de mais de um milhão de refugiados à Europa no decorrer de 2015 criou a oportunidade para um novo híbrido político vencedor que combinava xenofobia com valores de livre mercado. A nova diretiva que elabora sobre raça, cultura e nação veio a ser a cepa mais recente de uma filosofia pró-mercado baseada não na ideia de que somos todos iguais, mas que somos de uma forma fundamental – e, talvez, de forma permanente –, diferentes.

Há um artigo sobre a ascensão da extrema direita na Alemanha que foi intitulado “entre o capital e o povo (Volk)”. Mas parece fazer mais sentido combiná-los de outro modo, tal como os seus próprios proponentes o fizeram. Poderíamos chamá-lo de uma língua que une o capital e a raça (Volk capital). Os novos fusionistas atribuem médias de inteligência aos habitantes de países de uma forma que coletiviza e torna inato o conceito de “capital humano”. Eles adicionam conotações de valores e tradições que não podem ser capturados estatisticamente, sombreando tudo em uma linguagem de essências nacionais e caráter nacional.

A virada para a ciência natural feita pelos novos fusionistas e “paleoliberais” é marcada por três dificuldades: supor uma natureza humana programada, admitir fronteiras rígidas e o aspirar por um dinheiro-ouro. Implica em uma busca pelas origens na savana, tanto para uma humanidade universal quanto para uma humanidade dilacerada por diferenças de grupo. Ela se manifestou-se por meio do foco nos pré-requisitos culturais extraeconômicos para uma sociedade de mercado funcional; assim, deu origem a uma ideia do que chamo de etnoeconomia ao lado do termo mais comum de etnoestado.

Ademais, essa virada envolveu a reformulação da humanidade em “classes cognitivas” ou no que também chamo de neurocastas, à medida que a inteligência foi afirmada como o novo mecanismo de classificação para uma sociedade pós-industrial. O retorno à natureza também se manifestou na fé na superioridade do ouro como meio de troca e como reserva de valor em tempos de incerteza, uma forma de dinheiro validada não apenas pela história e pela economia, mas também pela antropologia, psicologia e sua ereção como atributo de moralidade.

O último capítulo do livro descreve a ascensão do sonho do ouro na década de 1970, quando negociantes de moedas, incluindo o político americano Bon Paul, tornaram-se empresários ideológicos muito influentes. A década de 1990 viu um ressurgimento do interesse pelo ouro em uma década atormentada por temores quanto às diferenças raciais, agitações urbanas e guerras civis globais. Após a crise financeira global em 2008, o ouro voltou a aparecer mais uma vez há história como uma proteção contra a desvalorização da moeda, assim como uma defesa diante dos temores da direita sobre o suposto socialismo do presidente Barack Obama.

O ouro foi vendido nos programas de televisão de ideólogos de direita; Glenn Beck, por exemplo, não deixou de receber uma parte das barras e das ações vendidas a seus telespectadores. Impulsionado pela incerteza geopolítica e econômica, o valor do ouro subiu acima de US$ 2.000 a onça, em 2011, antes de cair, apenas para subir novamente durante a pandemia de Covid-19, em 2020 e nos anos seguintes para uma alta histórica.

Ora, o dinheiro nunca permaneceu apenas dinheiro, mesmo quando era cunhado em ouro. Especialmente depois de 2008, figuras dos partidos de extrema direita como o AfD transformaram o ouro em um novo tipo de moralidade, um marcador de valor qualitativo que lhe pareceu análogo ao valor da cultura e da raça. As barras e as moedas de ouro como ideário apoiaram a escatologia fiscal, originada numa leitura de trás para frente da história, ou seja, a partir do momento em que um colapso econômico parecia se aproximar.

Este livro mostra que muitas variações contemporâneas da extrema direita surgiram dentro do neoliberalismo, não em oposição a ele. Eles não propuseram a rejeição total do globalismo, mas uma variedade dele, que aceita uma divisão internacional do trabalho desde que seja feita por meio de fluxos de mercadorias transfronteiriços robustamente mantidos e até mesmo por meio de acordos comerciais multilaterais, ao mesmo tempo em que reforça os controles sobre certos tipos de migração. Por mais repelente que seja a sua política, esses pensadores radicais não são bárbaros às portas do globalismo neoliberal, mas filhos bastardos dessa própria linha de pensamento. O confronto de opostos aqui relatado não passa de uma briga de família.

*Quinn Slobodian é professor de história na Universidade de Boston. Autor, entre outros livros, de Capitalismo destrutivo: os radicais do mercado e a ameaça de um mundo sem democracia (Objetiva). [https://amzn.to/4mS2Upo]

Tradução: Eleutério F. S. Prado.

Introdução do livro Hayek’s bastards: race, gold, IQ, and the capitalism of the far right. Nova York: Zone Book, 2025.

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