O sentido na história

William Turner, Estudo de vinheta de um navio em uma tempestade, c.1826–36
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Por KARL LÖWITH*

Prefácio e trecho da Introdução do livro recém-editado

Depois de ter finalizado este pequeno estudo sobre o tema mais amplo da Weltgeschichte e da Heilsgeschichte, comecei a me perguntar se o leitor não ficaria desapontado com a falta de resultados “construtivos”. Essa falta aparente é, porém, um ganho real, se for verdade que a verdade é mais desejável do que a ilusão.

Assumindo que um único grão de verdade é preferível a um vasto construto de ilusões, tentei ser honesto comigo mesmo e, consequentemente, também com o meu leitor sobre a possibilidade, ou melhor, a impossibilidade de impor à história uma ordem fundamentada na razão ou de traçar a operação de Deus.

A história, como registro parcial da experiência humana, é profunda demais e, ao mesmo tempo, rasa demais para evidenciar a humilde grandeza de uma alma humana que é capaz de dar sentido, se é que algo é capaz de dá-lo, àquilo que, de outro modo, seria um fardo para o ser humano. A história não prova nem refuta mais o valor incomparável da retidão e do heroísmo de um ser humano em face dos poderes do mundo do que ela prova ou refuta a existência de Deus.

Claro, tanto indivíduos quanto nações inteiras podem ser hipnotizadas na crença de que Deus ou algum processo mundial quer que eles alcancem isto ou aquilo ou que sobrevivam enquanto outros estão afundando, mas há sempre algo de patético, se não de grotesco, em crenças desse tipo. Para a mente crítica, nem um plano providencial nem uma lei natural do desenvolvimento progressivo é discernível na trágica comédia humana de todos os tempos.

Friedrich Nietzsche estava certo quando disse que olhar para a natureza como se ela fosse uma prova da bondade e do zelo de Deus e interpretar a história como um testemunho constante de uma ordem e um propósito moral – que tudo isso agora é passado, pois é contrariado pela consciência. Mas ele estava errado em assumir que a composição pseudorreligiosa da natureza e da história tem alguma consequência real para uma genuína fé cristã em Deus, tal como revelada por Cristo e oculta na natureza e na história.

Mais inteligente do que a visão superior de filósofos e teólogos é o senso comum do homem natural e o senso incomum do crente cristão. Nenhum deles pretende discernir na tela da história humana o propósito de Deus ou do próprio processo histórico. Em vez disso, buscam liberar o ser humano da história opressiva do mundo sugerindo uma atitude, seja de ceticismo ou de fé, que está enraizada em uma experiência que é certamente nutrida pela história, mas que dela se destaca e que a ultrapassa, permitindo assim ao ser humano suportá-la com uma resignação madura ou com uma expectativa fiel.

A fé religiosa está tão pouco em desacordo com o ceticismo que ambos estão antes unidos por sua oposição comum às presunções do conhecimento estabelecido. Pode- se, de fato, como sugeriu David Hume, erigir “a fé religiosa sobre o ceticismo filosófico”; mas a história do ceticismo religioso e irreligioso ainda não foi escrita.

Um homem que vive pelo pensamento deve ter seu ceticismo – literalmente, uma paixão pela busca –, que pode terminar na manutenção da pergunta como pergunta ou em uma resposta que transcenda a dúvida por meio da fé. O cético e o crente têm uma causa comum contra a leitura fácil da história e de seu sentido. Sua sabedoria, como toda sabedoria, consiste não em menor medida na desilusão e na resignação, em estar livre de ilusões e presunções.

Que o ser humano tem de tomar decisões aqui e agora que ultrapassam sua sabedoria potencial e, portanto, ficam aquém dela, é desnecessário dizer. Porém, seu planejamento e suas conjecturas, seus desígnios e suas decisões, por maior que seja seu alcance, têm apenas uma função parcial na economia de desperdício da história, que os engolfa, arremessa e engole.

          Eles sabem e não sabem que agir é sofrimento
          E sofrimento é ação. Nem o agente sofre
          Nem o paciente age. Mas ambos estão fixos
          Em uma ação eterna, uma paciência eterna
          Com a qual todos precisam consentir para que seja desejada,
          E que todos devem sofrer para que possam deseja-la,
          Para que o padrão possa subsistir…

(T. S. Eliot, Assassinato na catedral).

Introdução

1.

O termo “filosofia da história” foi inventado por Voltaire, que o utilizou pela primeira vez em seu sentido moderno, como algo distinto da interpretação teológica da história.

No Ensaio sobre os costumes e o espírito das nações, de Voltaire, o princípio orientador não era mais a vontade de Deus e a providência divina, mas a vontade do homem e a razão humana. Coma dissolução gradual da crença oitocentista na razão e no progresso, a filosofia da história perdeu em alguma medida o seu chão. O termo ainda é usado, ainda mais amplamente do que antes, mas seu conteúdo foi tão diluído que o que quer que se pense sobre a história pode ser chamado de filosofia. O

 rótulo “filosofia”, como é usado hoje em dia de forma tão barata (“filosofia” de vida, de negócios e até mesmo de acampamento), não indica uma filosofia específica, mas apenas opiniões públicas e privadas. Na discussão a seguir, o termo “filosofia da história” é usado com o significado de uma interpretação sistemática da história universal de acordo com um princípio pelo qual os eventos e as sucessões históricas são unificados e direcionados para um sentido último.

Tomada nesse sentido, a filosofia da história é, no entanto, totalmente dependente da teologia da história, em particular do conceito teológico da história como uma história de cumprimento e salvação. Mas, então, a filosofia da história não pode ser uma “ciência”; pois como se poderia verificar a crença na salvação com base científica? A ausência de tal base científica e, ao mesmo tempo, a busca por ela fez que os filósofos modernos e até mesmo teólogos como Troeltsch rejeitassem completamente o tratamento pré-científico da história, embora aceitassem, em princípio, o método empírico de Voltaire.

Argumentando que a filosofia da história, de Agostinho a Bossuet, não apresenta uma teoria da história “real” em sua finitude, riqueza e mobilidade, mas apenas uma doutrina da história com base na revelação e na fé, eles chegaram à conclusão de que a interpretação teológica da história – ou seja,1.400 anos de pensamento ocidental – é um assunto irrelevante. Contra essa opinião comum de que o pensamento histórico propriamente dito começa apenas nos tempos modernos, com o século XVIII, o esboço a seguir visa mostrar que a filosofia da história se origina com a fé hebraica e cristã em uma história que se cumpre e que termina com a secularização de seu modelo escatológico. Daí a sequência invertida de nossa apresentação histórica.

Essa maneira um tanto incomum de desenvolver a sucessão histórica das interpretações da história, de forma regressiva, começando nos tempos modernos e voltando ao seu início, pode ser justificada por três motivos: um didático, um metódico e um substancial.

Embora a abstenção de qualquer quadro de referência teológico ou metafísico, como defendido por Burckhardt, seja em si mesma persuasiva para o leitor moderno, a compreensão teológica de épocas anteriores é, à primeira vista, estranha para uma geração que está despertando agora do sonho secular de progresso que substituiu a fé na providência, mas que ainda não alcançou a renúncia resoluta de Burckhardt. Daí a conveniência didática de começar com o que é familiar à mente moderna antes de abordar o pensamento não familiar das gerações anteriores. É mais fácil entender a antiga crença na providência por meio de uma análise crítica das implicações teológicas da crença ainda existente no progresso secular do que entender a crença no progresso por meio de uma análise da providência.

2.

Uma abordagem adequada da história e de suas interpretações é necessariamente regressiva pela simples razão de que a história está avançando, deixando para trás os fundamentos históricos das elaborações mais recentes e contemporâneas. A consciência histórica só é capaz de começar por si mesma, embora seu objetivo seja conhecer o pensamento de outros tempos e de outros seres humanos, diferentes de nosso tempo e de nós mesmos.

A história precisa ser sempre e a cada vez recuperada e redescoberta pelas gerações vivas. Entendemos –bem ou mal – os autores antigos, mas sempre à luz do pensamento contemporâneo, lendo o livro da história de trás para a frente, da última página à primeira. Essa inversão do modo habitual de apresentação histórica é, na verdade, praticada até mesmo por aqueles que partem de épocas passadas para os tempos modernos, sem estarem conscientes de suas motivações contemporâneas.

3.

O regresso metódico das interpretações seculares modernas da história até o seu antigo modelo religioso é (por último, mas não menos importante) substancialmente justificado pela percepção de que nos encontramos mais ou menos no fim da linha moderna. Ela se desgastou demais para nos dar algum apoio esperançoso.

Aprendemos a esperar sem esperança, “pois a esperança seria esperança pela coisa errada”. Daí por que é saudável lembrar, nestes tempos de incerteza, aquilo que foi esquecido e recuperar as fontes genuínas dos nossos sofisticados resultados. Isso é possível não por um salto imaginário, seja para o cristianismo primitivo (Kierkegaard) ou para o paganismo clássico (Nietzsche), mas apenas pela redução analítica do composto moderno em seus elementos originais.

No entanto, o elemento proeminente a partir do qual uma interpretação da história pode afinal emergir é a experiência básica do mal e do sofrimento e da busca do ser humano pela felicidade. A interpretação da história é, em última análise, uma tentativa de entender o sentido da história como o sentido do sofrimento pela ação histórica. O sentido cristão da história, em particular, consiste no fato mais paradoxal de que a cruz, esse sinal da mais profunda ignomínia, pôde conquistar o mundo dos conquistadores ao se opor a ele.

Em nossos tempos, cruzes foram carregadas em silêncio por milhões de pessoas; e se algo justifica o pensamento de que o sentido da história deve ser entendido em um sentido cristão, esse algo é esse imenso sofrimento. No mundo ocidental, o problema do sofrimento foi enfrentado de duas maneiras diferentes: pelo mito de Prometeu e pela fé em Cristo – um, rebelde, o outro, servo. Nem a Antiguidade nem o cristianismo se entregaram à ilusão moderna de que a história pode ser concebida como uma evolução progressiva que resolve o problema do mal por meio da sua eliminação.

É privilégio da teologia e da filosofia, em contraste com as ciências, fazer perguntas que não podem ser respondidas com base no conhecimento empírico. Todas as perguntas fundamentais sobre as coisas primeiras e últimas são perguntas desse gênero; elas permanecem significativas porque nenhuma resposta pode silenciá-las. Significam uma busca fundamental, pois não haveria busca pelo sentido da história se seu sentido estivesse manifesto nos eventos históricos. É a própria ausência de sentido nos eventos eles mesmos que motiva a busca.

Por outro lado, é somente dentro de um horizonte preestabelecido de um sentido último, por mais oculto que seja, que a história real parece não ter sentido. Esse horizonte foi estabelecido pela história, pois foi o pensamento hebraico e cristão que trouxe à existência essa questão colossal. Fazer seriamente a pergunta sobre o sentido último da história é algo que nos tira o fôlego; ela nos transporta para um vácuo que somente a esperança e a fé podem preencher.

Os antigos eram mais moderados em suas especulações. Não tinham a pretensão de dar sentido ao mundo ou de descobrir seu sentido último. Impressionavam-se com a ordem e a beleza visíveis do cosmos, e a lei cósmica de crescimento e decadência também era o modelo para sua compreensão da história. De acordo com a visão grega da vida e do mundo, tudo se move em recorrências, como a eterna recorrência do nascer e do pôr do sol, do verão e do inverno, da geração e da corrupção.

Essa visão era satisfatória para eles porque é uma compreensão racional e natural do universo, combinando o reconhecimento das mudanças temporais com a regularidade periódica, a constância e a imutabilidade. O imutável, tal como é visível na ordem fixa dos corpos celestes, tinha maior interesse e valor para eles do que qualquer mudança progressiva e radical.

4.

Nesse clima intelectual, dominado pela racionalidade do cosmos natural, não havia espaço para o significado universal de um evento histórico único e incomparável. Quanto ao destino do ser humano na história, os gregos acreditavam que o ser humano tem desenvoltura para enfrentar todas as situações com magnanimidade – e eles não iam além disso. Estavam preocupados primariamente com o logos do cosmos, não com Deus e com o sentido da história.

Até mesmo o tutor de Alexandre, o Grande, depreciava a história em contraste com a poesia, e Platão pode ter dito que a esfera da mudança e da contingência é o domínio da historiografia, mas não da filosofia. Para os pensadores gregos, uma filosofia da história teria sido uma contradição em termos. Para eles, a história era história política e, como tal, um estudo próprio de estadistas e historiadores.

Para judeus e cristãos, porém, a história era primariamente uma história da salvação e, como tal, a preocupação própria dos profetas, pregadores e mestres. A própria existência de uma filosofia da história e sua busca por um sentido se deve à história da salvação; ela surgiu da fé em um propósito último. Na era cristã, a história política também estava sob a influência funesta desse pano de fundo teológico. De alguma forma, os destinos das nações passaram a estar relacionados a uma vocação divina ou pseudodivina.

Não é por acaso que usamos as palavras “sentido” e “propósito” de maneira intercambiável, pois é principalmente o propósito que constitui o sentido para nós. O sentido de todas as coisas que são o que são, não por natureza, mas por terem sido criadas por Deus ou pelo homem, depende do propósito. Uma cadeira tem o sentido de ser uma “cadeira” pelo fato de indicar algo além de sua natureza material: o propósito de ser usada como assento. Esse propósito, entretanto, existe apenas para nós que fabricamos e usamos essas coisas.

E como uma cadeira, uma casa, uma cidade ou um B-29 é um meio para o fim ou propósito de um ser humano, o propósito não é inerente à coisa, mas a transcende. Se abstrairmos de uma cadeira seu propósito transcendente, ela se tornará uma combinação sem sentido de pedaços de madeira.

O mesmo é verdadeiro com relação à estrutura formal do sentido da história. A história também é dotada de sentido apenas por indicar algum propósito transcendente além dos fatos reais. Mas, como a história é um movimento no tempo, o propósito é uma meta. Eventos singulares não são dotados de sentido enquanto tais, assim como não é dotada de sentido enquanto tal uma mera sucessão de eventos. Só é possível arriscar uma declaração sobre o sentido dos eventos históricos quando seu télos se torna aparente.

Quando um movimento histórico já desdobrou suas consequências, refletimos sobre sua primeira aparição a fim de determinar o sentido do evento como um todo, ainda que ele seja um evento particular – trata-se de um “todo” desde um ponto de partida definido e um ponto de chegada final. Se refletirmos sobre todo o curso da história, imaginando seu início e antecipando seu fim, pensamos em seu sentido em termos de um propósito último.

A afirmação de que a história tem um sentido último implica um propósito ou meta final que transcende os eventos reais. Essa identificação de sentido e propósito não exclui a possibilidade de outros sistemas de sentido. Para os gregos, por exemplo, os eventos históricos e os destinos certamente não eram simplesmente sem sentido – eles eram plenos de importância e sentido, mas não eram dotados de sentido no sentido de serem direcionados para um fim último em um propósito transcendente que compreende todo o curso dos eventos.

5.

O horizonte temporal de uma meta final é, no entanto, um futuro escatológico, e o futuro existe para nós apenas pela expectativa e pela esperança. O sentido último de um propósito transcendente está focado em um futuro esperado. Essa expectativa estava mais intensamente viva entre os profetas hebreus; ela não existia entre os filósofos gregos.

Quando nos lembramos de que o Segundo Isaías e Heródoto foram quase contemporâneos, percebemos o abismo intransponível que separa a sabedoria grega da fé judaica. A perspectiva cristã e pós-cristã da história é futurista, pervertendo o sentido clássico de historein, que está relacionado a eventos presentes e passados. Nas mitologias e genealogias gregas e romanas, o passado é representado como um fundamento perpétuo.

Na visão hebraica e cristã da história, o passado é uma promessa para o futuro; consequentemente, a interpretação do passado se torna uma profecia ao contrário, demonstrando o passado como uma “preparação” para o futuro dotada de sentido. Os filósofos e historiadores gregos estavam convencidos de que o que quer que venha a acontecer terá o mesmo padrão e caráter dos eventos passados e presentes; eles nunca se deixaram levar pelas possibilidades prospectivas do futuro.

Essa tese geral pode ser sustentada se nos referirmos a Heródoto, Tucídides e Políbio. A preocupação de Heródoto era registrar as coisas que haviam acontecido, “para que a memória do passado não seja apagada do meio dos homens pelo tempo” e “para que os grandes feitos não percam o renome”. O “sentido” dos eventos registrados não é explícito e não transcende os eventos individuais, mas está implicado nas próprias histórias. O que elas significam é simplesmente o que elas destacam com seus pontos.

Por trás desses sentidos óbvios, há também sentidos meio ocultos, ocasionalmente revelados em palavras, gestos, sinais e oráculos significativos. E quando, em determinados momentos, as ações e os eventos humanos reais coincidem com as insinuações sobre humanas, completa-se um círculo de sentido no qual o início e o fim de uma história se iluminam mutuamente.

O esquema temporal da narrativa de Heródoto não é um curso dotado de sentido da história universal que visa a um objetivo futuro, mas, como toda concepção grega de tempo, é periódico, movendo-se no interior de um ciclo. Na visão de Heródoto, a história demonstra um padrão repetitivo, regulado por uma lei cósmica de compensação, principalmente por meio da nemesis, que sempre restaura o equilíbrio das forças naturais históricas.

Em Tucídides, o pano de fundo religioso e os traços épicos da historiografia de Heródoto, que nunca define claramente a fronteira entre o humano e o divino, são definitivamente substituídos por uma investigação rigorosa das concatenações pragmáticas. Para ele, a história era uma história de lutas políticas baseadas na natureza do homem.

E, como a natureza humana não muda, os eventos que aconteceram no passado “acontecerão outra vez do mesmo modo ou de modo semelhante”. Nada de realmente novo pode ocorrer no futuro se “a natureza de todas as coisas é crescer assim como fenecer”. Pode ser que as gerações e os indivíduos futuros ajam de forma mais inteligente em determinadas circunstâncias, mas a história enquanto tal não mudará essencialmente. Em Tucídides, não há a menor tendência de julgar o curso dos eventos históricos do ponto de vista de um futuro que é distinto do passado por ter um horizonte aberto e um objetivo último.

Apenas Políbio parece se aproximar de nosso conceito de história, representando todos os eventos como levando a um fim definido: o domínio mundial de Roma. Mas mesmo Políbio não tinha um interesse primário no futuro como tal. Para ele, a história gira em um ciclo de revoluções políticas, onde as constituições mudam, desaparecem e retornam seguindo um curso estipulado pela natureza.

Como resultado dessa fatalidade natural, o historiador pode predizer o futuro de um determinado Estado. Ele pode estar errado em sua estimativa do tempo que o processo levará, mas, se seu julgamento não estiver emocionalmente contaminado, raramente se enganará em relação ao estágio de ascensão ou declínio que o Estado alcançou e à forma na qual ele se converterá.

Além disso, a lei geral da fortuna é a mutabilidade – a virada repentina de um extremo para o oposto. Tendo testemunhado o perecimento da monarquia macedônica, Políbio achou conveniente resgatar as palavras proféticas de Demétrio, que, em seu tratado sobre a Fortuna, havia previsto o que deveria acontecer 150 anos após a conquista do Império Persa por Alexandre:

6.

Pois se considerar não incontáveis anos ou muitas gerações, mas apenas estes últimos cinquenta anos, você lerá neles a crueldade da Fortuna. Eu lhe pergunto: você acha que há cinquenta anos os persas e o rei persa ou os macedônios e o rei da Macedônia, se algum deus lhes tivesse predito o futuro, teriam acreditado que, no momento em que vivemos, o próprio nome dos persas teria perecido completamente – os persas, que eram senhores de quase todo o mundo – e que os macedônios, cujo nome era quase desconhecido no passado, seriam agora os senhores de tudo isso?

Mas, não obstante, essa Fortuna, que nunca compactua com a vida, que sempre vence nossos cálculos com algum golpe inusitado; ela, que sempre demonstra seu poder frustrando nossas expectativas, agora também, ao que me parece, deixa claro para todos os homens, ao dotar os macedônios com toda a riqueza. da Pérsia, que ela apenas lhes emprestou essas bênçãos até que decida lidar com elas de outro modo.

Essa mutabilidade da fortuna não apenas causava tristeza ao homem antigo, mas era aceita com um assentimento viril. Refletindo sobre o destino de todas as coisas humanas, Políbio percebeu que todas as nações, cidades e autoridades de vem, como os homens, encontrar seu fim.

Relatando o famoso dito de Cipião após a queda de Cartago, de que o mesmo fado acabará sendo pronunciado sobre a Roma vitoriosa, Políbio comenta que seria difícil mencionar uma declaração “mais estadista e mais profunda”, pois ter em mente, no momento de maior triunfo, a possível reversão da fortuna é próprio de um homem grande e perfeito, digno de ser lembrado. Políbio e seu amigo Cipião, no entanto, apenas reafirmam o estado de espírito clássico expresso por Homero com relação ao destino de Troia e Príamo. E onde quer que o sentimento clássico esteja vivo, a sabedoria final do historiador ainda é a mesma.

A lição moral a ser extraída da experiência histórica de glórias e desastres alternados é, de acordo com Políbio, “nunca se vangloriar indevidamente das conquistas”, sendo arrogante e impiedoso, mas sim refletir sobre a extremidade oposta à da fortuna. Por isso, ele queria instruir seu leitor sobre como aprender com o estudo da história o que é “melhor em cada momento e em cada circunstância”, ou seja, ser moderado em tempos de prosperidade e tornar-se sábio com os infortúnios dos outros – uma máxima que é tão razoável quanto é distante da percepção cristã do pecado e da esperança na redenção.

O fato de Políbio não sentir dificuldade em prognosticar desenvolvimentos futuros indica a diferença fundamental entre a perspectiva e a atitude clássicas e cristãs em relação ao futuro. Para Políbio, era “uma questão fácil” predizer o futuro “por inferência a partir do passado”. Para aqueles que escreveram o Antigo Testamento, somente o próprio Senhor poderia revelar, por meio de seus profetas, um futuro que é independente de tudo o que aconteceu no passado e que não pode ser inferido do passado como uma consequência natural.

Portanto, o cumprimento de profecias, como entendido pelos escritores do Antigo e do Novo Testamento, é totalmente diferente da verificação de prognósticos relativos a eventos histórico naturais. Embora o futuro possa ser predeterminado pela vontade de Deus, ele é determinado por uma vontade pessoal e não por uma fatalidade natural, e o homem nunca pode predizê-lo a menos que Deus lhe revele. E, como o cumprimento final do destino hebraico e cristão se encontra em um futuro escatológico, cuja questão depende da fé e da vontade do ser humano, e não de uma lei natural da história pragmática, o sentimento básico em relação ao futuro se torna de incerteza diante de sua incalculabilidade teórica.

7.

Até o momento, confirma-se a tese de Jacob Burckhardt de que o que nos separa mais profundamente dos antigos é que eles acreditavam na possibilidade de antever o futuro, seja por inferência racional ou pelos meios populares de questionar oráculos e praticar adivinhação, enquanto nós não acreditamos. Não é algo que achemos sequer desejável.

Se imaginarmos um homem, por exemplo, que saiba de antemão o dia de sua morte e a situação em que ela o encontraria, ou um povo sabendo de antemão o século de sua queda, ambas as imagens trariam consigo como uma consequência inevitável a confusão de todo desejo e esforço. Pois o desejo e o esforço só podem se desenvolver livremente quando vivem e agem cegamente, ou seja, por sua própria conta e em obediência a impulsos internos.

Afinal de contas, o futuro só ganha forma quando isso acontece e, se não acontecesse, a vida futura e o fim daquele homem ou daquele povo seriam diferentes. Um futuro conhecido antecipadamente é um absurdo. O conhecimento antecipado do futuro, entretanto, não é apenas indesejável, mas também implausível para nós. O principal obstáculo no caminho é a confusão de nosso discernimento causada por nossos desejos, esperanças e medos; além disso, nossa ignorância de tudo o que chamamos de forças latentes, físicas ou mentais, e o fator incalculável dos contágios mentais, que podem transformar o mundo repentinamente.

No entanto, o principal motivo pelo qual, “para nós”, o futuro permanece opaco não é a miopia de nosso conhecimento teórico, mas a ausência daquelas suposições religiosas que tornavam o futuro transparente para os antigos. A Antiguidade, como a maioria das culturas pagãs, acreditava que os eventos futuros podiam ser revelados por dispositivos especiais de adivinhação. Podem ser antecipados porque são pré-ordenados.

Com exceção de alguns filósofos, ninguém na Antiguidade questionava a veracidade de oráculos, sonhos agourentos e presságios que previam eventos futuros. Como os antigos geralmente acreditavam em um fado predestinado, os eventos e destinos futuros estavam apenas levemente encobertos sob um véu que uma mente inspirada poderia penetrar. Portanto, era uma característica comum da vida grega e romana a tomada de decisões que dependiam de uma sondagem do destino.

Essa confiança antiga na adivinhação nunca perdeu sua reputação, até que a Igreja a arrancou pela raiz. Mas a Igreja também acreditava na predestinação, embora não pelo destino, enquanto o homem moderno não acredita em orientação, seja pelo destino ou pela providência. Ele imagina que o futuro pode ser criado e providenciado por ele mesmo.

As previsões do próprio Burckhardt sobre o futuro da Europa não contradizem sua tese, pois ele nunca teve a pretensão de conhecer as possibilidades do futuro como se conhecem fatos definitivos do passado. Mas o que dizer de Tocqueville, Spengler e Toynbee, que fazem prognósticos teóricos sobre desenvolvimentos futuros? Para eles também é uma “questão fácil” prever o que vai acontecer?

Certamente não, pois a crença deles em um destino histórico não é o resultado de uma aceitação convicta do destino natural; ela é profundamente ambígua por causa de sua contracrença na responsabilidade do homem pela história por meio da decisão e da vontade – uma vontade que é sempre direcionada a um futuro de possibilidades indeterminadas.

8.

Para Alexis Tocqueville, a marcha da democracia tem tanto de fatalidade irresistível quanto de providência irresistível, pois tanto aqueles que a promovem quanto aqueles que a obstruem são instrumentos cegos nas mãos de um poder que dirige a história. “O desenvolvimento gradual da igualdade de condições é portanto, um fato providencial e possui todas as características de um decreto divino: é universal, é duradouro, elude constantemente qualquer interferência humana, e todos os eventos e todos os seres humanos servem ao seu desenvolvimento.”

Tentar impedir a democracia pareceria então “estar lutando contra o próprio Deus” e contra a providência. O reverso dessa impossibilidade de interromper a marcha da democracia e sua fatalidade providencial é o fato de que seus prospectos futuros podem ser previstos. A contemplação de uma revolução tão irresistível produziu na cabeça de Tocqueville “uma espécie de pavor religioso”.

No entanto, no parágrafo seguinte e novamente no último capítulo de sua obra, Tocqueville quer que esse processo providencial seja dirigido e contido pela antevisão e pela vontade do próprio ser humano; pois o destino das nações cristãs “ainda está em suas mãos”, embora possa não permanecer nelas por muito mais tempo. Essa solução da dificuldade por meio de uma liberdade parcial no interior de uma fatalidade parcial reafirma, embora em termos mais fracos, o antigo problema teológico da compatibilidade da providência divina com o livre arbítrio.

Spengler, na primeira frase de O declínio do Ocidente, anuncia audaciosamente que está tentando “pela primeira vez” o feito de determinar de forma antecipada a história. O pressuposto de sua tentativa é que o curso da história seja em si mesmo determinado pela necessidade. O significado das culturas históricas reside no cumprimento fatal de ciclos de vida, desde o crescimento e o florescimento até a decadência. Não sendo dirigida nem pela vontade de Deus nem pela vontade do homem, a história não tem objetivo ou propósito.

Sua “sublimidade” consiste nessa própria falta de propósito. No entanto, quando Spengler passa a definir seu conceito supremo de “destino”, introduz a noção de um tempo não cíclico, “histórico”, direcionado para o futuro. O sentido histórico é, segundo ele, um “sentido do futuro”, peculiar à alma e à Weltanschauung [cosmovisão] fáusticas, que são dinâmicas e infinitas, em contraste com a finitude estática da cultura apolínea clássica.

Spengler, pertencente ele próprio à cultura fáustica que surgiu no apogeu da Idade Média, mas independente da religião cristã, que não tem um lugar próprio em seu sistema, está longe de aceitar com o desapego clássico o destino inescapável do declínio. Ele desafia aqueles que nutrem ilusões e, como Nietzsche, ensina a eles que devem querer e amar o destino, até mesmo promove-lo e cumpri-lo.

Nenhum antigo jamais imaginou que o destino do declínio deveria ser desejado e escolhido; pois o destino ou é realmente destino, e então é inútil decidir sobre ele, ou é um destino autoescolhido, e então não é um destino inevitável. Spengler não resolve esse problema do destino natural e do destino histórico. Seu páthos surge da confusão da vontade em relação a um futuro ainda aberto a possibilidades com a aceitação de um desfecho definitivo.

A continuação de O declínio do Ocidente é, portanto, um apelo aos “Anos de decisão” vindouros nessa última crise histórica. Quer que os alemães construam um “socialismo prussiano”, que estejam preparados para ele. Longe de ver na história um processo histórico natural, ele conclui seu trabalho com a frase (derivada de Schiller e usada por Hegel, mas oriunda da visão profética do Antigo Testamento): “A história do mundo é o tribunal do mundo” (Die Weltgeschichte ist das Weltgericht) – um tribunal sem um juiz moral.

Daí a redação característica de sua primeira frase, segundo a qual a predição da história não é simples questão de apenas seguir o curso designado da natureza, mas uma “tentativa” e um “empreendimento”, ou seja, o empreendimento de profetizar o julgamento da história. O que para Políbio é uma constatação teórica de um fato, torna-se para Spengler um imperativo ético, pois a alma fáustica não pode senão interpretar o destino na perspectiva de um eschaton.

9.

A consciência histórica de Toynbee é semelhantemente dividida entre as tradições clássica e cristã. Ele também tenta estabelecer um ritmo recorrente de ciclos de vida, repetindo um padrão permanente de gênese e desenvolvimento, colapso e desintegração de uma cultura. Ao mesmo tempo, ele quer extrair desse processo histórico natural um propósito e um sentido definidos. A universalidade material de seu estudo comparativo de vinte e uma civilizações, ou melhor, “sociedades”, está concentrada na história de nossa sociedade ocidental.

O “Declínio do Ocidente” também é o problema último de Toynbee. No entanto, ele é menos assertivo do que Spengler na previsão da história, pois a desintegração pode parecer ascensão e vice versa. Além disso, o que faz que uma civilização decaia em sua trajetória fatal não é uma lei cósmica de ciclos recorrentes, mas uma destruição autoinfligida, uma vez que a história é uma transação perpétua de “desafio” e “resposta” entre o ser humano e o ambiente.

Apesar da liberdade e da responsabilidade que estão implicadas na resposta do ser humano, Toynbee sugere, contudo, um determinismo ainda mais rigoroso do que o de Políbio: a marcha normal do ritmo de desintegração é exatamente “três batidas e meia”, e supõe-se que o Ocidente já tenha passado pela experiência de uma batida e meia! A história é mais do que uma história de civilizações. Ela é também e até mesmo em primeiro lugar uma história da religião, e, para Toynbee, as religiões não são expressões homogêneas de culturas, como são para Spengler, mas transcendem suas culturas.

Daí a preocupação especial de Toynbee com as religiões de salvação cristãs e pré-cristãs. Elas são o único meio criativo de escapar de uma sociedade em desintegração. Eles criam um novo clima e uma nova dimensão e, portanto, um novo tipo de sociedade, a saber, uma Igreja universal contra a minoria dominante dos Estados totais.

A desintegração de uma sociedade secular, seja ela pagã ou nominalmente cristã, oferece a oportunidade para o surgimento de uma religião universal e para uma história de salvação para as almas dos seres humanos individualmente; mas, indiretamente, ela também transforma a sociedade. Os seres humanos aprendem por meio do sofrimento, e o Senhor castiga a quem Ele ama. Assim, o cristianismo nasceu nos estertores da morte de uma sociedade helênica em colapso, que serviu como uma boa serva para a religião cristã.

Se a função histórica das civilizações é servir, por meio de suas quedas, como trampolins para um processo progressivo de revelação de uma percepção religiosa sempre mais profunda e para a dádiva de uma graça cada vez maior para agir de acordo com essa percepção, mas se, por outro lado, não é a função histórica das religiões superiores servir, tal como crisálidas, ao processo cíclico de reprodução das civilizações, então as sociedades das espécies denominadas civilizações terão cumprido sua função quando tiverem dado à luz uma religião superior madura; e, nesse sentido, nossa própria civilização secular ocidental pós-cristã pode ser, na melhor das hipóteses, uma repetição supérflua da civilização greco romana pré-cristã e, na pior, um pernicioso retrocesso no caminho do progresso espiritual.

*Karl Löwith (1897-1973) foi professor de filosofia em Heidelberg. Autor, entre outros livros, de De Hegel a Nietzsche (Unesp).

Referência


Karl Löwith. O sentido na história: os pressupostos teológicos da filosofia da história. Tradução: Luiz Philipe de Caux. São Paulo, Unesp, 2024, 366 págs. [https://amzn.to/3HGq1mm]


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