Pelé e a história

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram
image_pdfimage_print

Por LEONARDO SACRAMENTO*

Por que Pelé é a nossa maior figura da história social brasileira?

Pelé foi a nossa maior figura da história social brasileira, de difícil reprodução porque uma figura social se mede não apenas pela técnica ou pelos números, como tentam fazer hoje em mesas redondas e discussões intermináveis em canais de televisão e de redes sociais. A importância de alguém ou de algo se mede pelo impacto na área de atuação e nas relações sociais.

Pelé surgiu após a derrota de 1950 para o Uruguai no Maracanã, na qual Nelson Rodrigues diagnosticou as emergências de duas ideologias existentes que ganhavam uma organicidade perigosa na sociedade brasileira. A primeira era uma ideologia antinacional, da qual chamou de “viralatismo”. Essa ideologia dizia, aprofundando as políticas de Estado até então, que a Europa deveria ser copiada em tudo, inclusive no futebol – qualquer semelhança com o estágio atual dos debates futebolísticos não é mera coincidência.

O segundo era uma espécie de racismo organizado e pulverizado direcionado ao goleiro Barbosa, produzindo a ideia reinante até hoje no futebol que negros não são confiáveis para serem goleiros. A recriminação a Barbosa coroava a ideia segundo a qual negros deveriam desaparecer da vida social brasileira. Cinco anos antes, Getúlio Vargas, dando prosseguimento às políticas de embranquecimento iniciados em 1890, promulgara o Decreto-Lei 7.967, o qual autorizava a entrada de estrangeiros desde que respeitasse a “necessidade de preservar e desenvolver, na composição étnica da população, as características mais convenientes da sua ascendência europeia, assim como a defesa do trabalhador nacional”. Esse dispositivo só seria revogado em 19 de agosto de 1980.

Importante lembrar que Pelé vem de uma linhagem bastante peculiar, já que estamos a falar de realeza. Em muitos sentidos, Pelé descende de Arthur Friedenreich e Leônidas da Silva, esse apelidado de Diamante Negro (o chocolate é em sua homenagem). O primeiro apelido de Pelé foi Pérola Negra para contrastar com Leônidas, a primeira grande rivalidade entre jogadores alçados a gênios do futebol.

Pelé é uma síntese dos dois jogadores negros que o antecederam em um país cuja maioria dos clubes ainda se recusava a aceitar jogadores negros. Quando aceitavam, não deveriam ultrapassar a quantidade de jogadores brancos. As exceções Ponte Preta e Vasco passaram a ser acompanhadas por um time até então irrelevante do litoral paulista. A aposta do Santos de trabalhar com jogadores negros o alçou a maior clube do planeta.

Com a tão sonhada Copa do Mundo de 1958, vencida por uma seleção capitaneada pelo elegante e genial Didi, o Brasil ganhou nova perspectiva, coroando a década chamada de Anos Dourados. A vitória com o protagonismo do adolescente Pelé enterrou por longas décadas alguns dos fantasmas de 1950. Garrincha enterrou ainda mais em 1962. Verdade que volta e meia são exumados, mas Pelé os enterrou por longas décadas e criou um contraponto, quando surgem: a excelência do futebol brasileiro vinculado à africanidade (semba), ou o tal do “futebol moleque”, “futebol bonito” ou “futebol espetáculo”.

O futebol brasileiro seria a expressão de um espírito nacional fundado na africanidade, no samba, na roda, no candomblé, na capoeira e no corpo que não se dissocia da inteligência e da alma. Um contraponto à mecanização da relação entre corpo e inteligência feita pelo eurocentrismo, o capitalismo e o tal futebol europeu, esse bastante flexibilizado pela grande entrada de jogadores de ascendência africana e sul-americana. O time é o Barcelona, mas o seu melhor ataque foi Messi, Suarez e Neymar, três representantes de escolas não europeias. A sua transição ao futebol de hoje dependeu de um cara apelidado de bruxo, Ronaldinho Gaúcho. O grande time de hoje é o PSG, mas seu ataque é Messi, Neymar e Mbappé.

Pelé foi o grande responsável pela universalização do futebol, sobretudo em países que não tem o esporte entre os mais praticados. Se hoje há um mercado mundial do futebol, deve-se a Pelé e às viagens do Santos ao redor do planeta, o que explica a quantidade pequena de conquista da Libertadores. As viagens e os torneios davam mais grana e projeção. Os mercados chinês e estadunidense, sonhados pelos outrora péssimos times ingleses e pelos dois gigantes espanhóis, seriam impossíveis sem a atuação de Pelé a partir de 1970. É plenamente razoável concluir que sem Pelé não existiriam os atuais grandes times europeus. As grandes ligas não vivem apenas do mercado nacional, mas sobretudo do mercado internacional.

É possível também concluir tranquilamente que o Brasil de 1958 em diante impôs um tipo de futebol que entraria em crise apenas em 1990, no qual o parreirismo da seleção de 1994 foi a sua expressão. Sem Pelé e os seus companheiros de Santos e seleção o futebol seria bem diferente do praticado hoje. Os sistemas táticos da década de 1960 em diante surgiram em grande medida para tentar impedir Pelé e seus companheiros de jogar. Quase sempre se baseavam pancada, pois não havia cartões amarelo e vermelho.

Foi o que aconteceu na Copa de 1966, fazendo Pelé anunciar em 1967 que não serviria mais a seleção – julgava não possuir sorte nas copas e na seleção, sentimento reproduzido por Messi em 2016. Aliás, sem Pelé, sem Maradona e sem Messi. Sem Romário, sem Ronaldo, sem Gaúcho, sem Zico, sem Reinaldo, sem ninguém. Futebol é escola, não uma fábrica de “dons”.

Como o Brasil era conhecido no mundo antes de Pelé? Carmen Miranda, que nem brasileira foi? A representação que o mundo faz do Brasil passou para o Pelé a partir de 1958 – não é o tal brasileiro que se vê europeu, que preferiria uma Carmen Miranda. A representação nacional e internacional do Brasil é o Pelé. Uma das poucas vezes que a representação nacional e a internacional se misturam. Pelé é uma derrota da política de Estado do embranquecimento. A principal representação do Brasil foi, é e será um negro.

*Leonardo Sacramento é pedagogo no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo. Autor do livro A Universidade mercantil: um estudo sobre a Universidade pública e o capital privado (Appris).

 

O site A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
Clique aqui e veja como

Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

As origens da língua portuguesa
Por HENRIQUE SANTOS BRAGA & MARCELO MÓDOLO: Em tempos de fronteiras tão rígidas e identidades tão disputadas, lembrar que o português nasceu no vaivém entre margens – geográficas, históricas e linguísticas – é, no mínimo, um belo exercício de humildade intelectual
Dialética da malandragem
Por VINÍCIUS DE OLIVEIRA PRUSCH: Considerações sobre o ensaio de Antonio Candido
Qual a qualidade do Qualis?
Por FLÁVIO R. KOTHE: Se o Qualis mede qualidade por métricas que ignoram a originalidade do pensamento, então estamos diante de um sistema que canoniza a mediocridade. Enquanto Spinoza, Marx e Nietzsche são lembrados por terem sido rejeitados por seus pares, a academia brasileira celebra artigos que obedecem a fórmulas vazias
Thomas Münzer
Por MICHAEL LÖWY: Quinhentos anos depois, a revolução fracassada de Thomas Münzer ecoa no MST e nos movimentos que ousam desafiar o 'Baal' moderno: o capital que, como no século XVI, ainda veste roupagens sagradas para sacralizar a exploração
O drama do Brasil de hoje
Por LUIS FELIPE MIGUEL: Congresso corrupto cresce diante de governo apático
Tecnofeudalismo
Por EMILIO CAFASSI: Considerações sobre o livro recém-traduzido de Yanis Varoufakis
A Frente ampla acabou
Por MOYSÉS PINTO NETO: A Frente ampla foi necessária para frear o avanço conservador e fascista, mas não foi nada além disso. Hoje ela serve para impedir o governo Lula de adotar políticas progressistas, e o presidente contém a retórica que poderia dar um sentido mais amplo de luta política redistributiva em função da Frente Ampla
Ladainha da responsabilidade fiscal
Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA: Austeridade fiscal é a liturgia neoliberal que sacrifica vidas no altar da dívida. Enquanto os mercados rezam por juros altos, o povo paga a conta com saúde e educação. A justiça tributária? Uma heresia no catecismo do capital
O governo Lula e sua esfinge
Por LISZT VIEIRA: A esfinge de Lula não pergunta enigmas, mas exige respostas: ou o governo rompe com a política de conciliação que o enfraquece, ou será devorado pela história. O tempo do "bom moço" acabou – só um projeto claro e corajoso salvará seu legado das urnas famintas por mudança
Dólar – o centro da disputa pela hegemonia global
Por DENISE LOBATO GENTIL & GILBERTO MARINGONI: Reduzir a dependência da moeda hegemônica e transitar por um sistema monetário e financeiro multipolar exige movimentos coordenados de várias ordens
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES

OSZAR »